Miguel Mósca Nunes
14.04.23
Ana Luísa Amaral, uma das maiores poetas do mundo, já não se encontra entre nós, voou para outra dimensão, onde, certamente, é mais merecida e fará mais falta. A nós, faz-nos falta, mas não a merecemos.
Partilho um dos seus geniais e comoventes poemas, que hoje ouvi novamente, dito pela própria, na entrevista que deu à RTP, emitida a 6 de Agosto de 2022. Revi esta entrevista porque senti saudades de ouvir a voz de Ana Luísa. A voz que dourava todas as palavras que dizia, das pessoas mais sensíveis e inteligentes que Portugal teve o privilégio de ter como cidadã, como já tive a oportunidade de escrever. Comovi-me pela saudade, mas, sobretudo, porque nesta entrevista se percebe que a poeta é muito maior do que aquele estúdio, muito maior do que o próprio jornalista, que não se apercebe da verdadeira dimensão de quem está a entrevistar. Muito maior do que este triste e pobre país. Mais me comovi porque a genialidade e a monstruosidade do talento e da sabedoria de Ana Luísa Amaral são proporcionais a uma humildade que só as grandes pessoas possuem.
Testamento
Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos
Se eu morrer
quero que a minha filha não se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita
Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas de somar
e a descascar batatas
Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu
Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras
Ana Luísa Amaral