Miguel Mósca Nunes
07.06.21
Capítulo II
Conheci Madalena numa fase complicada da sua vida, tinha ela 19 anos. Nessa altura já estava a ser atormentada por um mar de dúvidas em relação aos estudos e ao futuro profissional. Apesar de tudo, detectei nela um fulgor persistente, característica daquelas pessoas que, a cada dissabor, a cada contrariedade, se levantam com uma renovada energia.
Gostei logo dela. Senti uma confortável empatia logo que trocámos as primeiras palavras. Creio que foi uma sensação mútua e mantivemos, desde aí, uma profunda amizade.
É um relacionamento transparente, que se traduz numa absoluta sinceridade. Partilhamos até as mais duras opiniões sobre a outra, e não guardamos nenhuma crítica, por mais azeda e cortante que seja. Achamos que só assim é que se consegue manter um fiel e duradouro vínculo de afecto. Um vínculo tão puro que nos torna quase irmãs, faltando apenas a ligação de sangue. Há irmãs que não são tão próximas quanto nós. Parece sermos fruto de uma gravidez gemelar.
Seria uma vã tentativa a de esconder o nosso íntimo uma da outra porque temos em comum a tal capacidade apurada de percepção. Adivinhamos os nossos pensamentos e os de algumas pessoas. Pena é que não consigamos canalizar este dom para quem queremos, e quando queremos. Vamos vivendo assim, confrontadas com o que a vida nos oferece, como que resignadas com esta sina que, na maioria das vezes, é violenta.
Ninguém consegue imaginar o que é isto de saber o que os outros estão a sentir num dado momento. O ódio, o desespero, a mesquinhez, o mal querer. Dá vontade de desaparecer, para o mais longe possível. E o mal-estar não passa logo. Temos de esperar. E, depois, a torturante memória não nos deixa em paz.
No fim de Setembro de 2001, após um Verão atípico, marcado por noites frias, Madalena foi ter a casa de Vítor, depois do trabalho, estimulada pela ideia de jantar fora, ainda para mais numa sexta-feira, num restaurante com um ambiente romântico, pensando que seria um bom fogo para a relação que há muito estava morna.
Podia ser o princípio de uma excelente noite.
Quando ele abriu a porta estava em cuecas, vestia apenas uma camisola de manga curta e calçava uns chinelos que já não eram beijes.
— Olá amor — disse ele. — Entra. Vai dar futebol — atirou, começando um corte preventivo das hipóteses de ela dar conta do seu sossego.
Tinha chegado a casa há cerca de meia hora e já tinha emborcado uma cerveja, dois sumos de pêra e comido, sôfrego, dois pães de Mafra com manteiga, queijo e fiambre. “Estás a ficar obeso”, pensou ela, a olhar para a lipídica protuberância que se estava a formar no ventre.
— Sabes uma coisa? — disse entusiasmada. — Vamos jantar fora.
— Quando, gorda? Hoje? — O namorado estava a ver a sua noite de repouso ir por água abaixo.
— Claro! — Já adivinhava o que ele queria mas continuou. — Vamos a um restaurante indiano muito agradável, já lá jantei com os meus pais e é fabuloso, tem um ambiente espectacular.
— Ó Madalena, porra, eu quero ficar sossegado! — chinfrinou de repente, colocando a mão sobre o comando da televisão pousado no braço do sofá. — Estou cansado, quero ver se não me chateio muito hoje. Vai dar o jogo daqui a um quarto de hora.
Madalena não suportou esta reacção e disse: — Muito bem, com que então queres ver se não te chateias... Está bem!
— Pronto, agora ficas zangada...
— Não, deixa estar, eu entretenho-me sozinha.
— Ó Madalena...
— Ó Vítor, deixa estar, ‘tá bem! — Estava a ferver. Mais uma vez ele não queria sair com ela. “Isto está a ficar lindo”, pensou. “ Prefere ver televisão a sair comigo... se é assim agora, como será depois do casamento?”.
Conheceram-se na universidade cinco anos antes. Eram de turmas diferentes mas viam-se na biblioteca e no refeitório, também bastantes vezes nos corredores, e começaram a cumprimentar-se, no meio da algazarra de vozes e ruídos, dos talheres a cair, dos pratos carregados de péssima comida e da sinfonia de panelas e tachos.
A atracção despertou. Poucos meses passaram até o namoro começar, com o habitual beijo lento, táctil e experimental, sempre húmido e trémulo. Tanto aparato...
— Olha Vítor, eu vou para casa — disse.
— Ó pá, vamos jantar, pronto. — O prato frio.
— Por amor de Deus, não faças o favor!
— Então o que é que queres, Madalena... — disse, num tom teatral e suplicante.
— Vou para casa, deixa-te estar sossegado, na tua casinha, que eu vou à minha vida! — cuspiu a gritar. Olhou-o e disse: — Estou farta e quero acabar com esta merda de coisa que temos um com o outro. — Pegou, num movimento ágil e rápido, no casaco que tinha colocado no sofá, levando colado um engordurado guardanapo de papel, e saiu porta fora.
Ele ficou a olhá-la, sem expressão.
Pela primeira vez tinha deixado transparecer para Vítor que sabia que ele já não era o mesmo e que não estava satisfeita. Cinco anos... Porque é que as pessoas mudam? Porque é que os homens mudam? A entrega, a partilha, a cedência, para quê?
É tudo tão lindo no princípio, a construção da teia, o ardil a ser cozinhado. Tudo tão preenchido de tolerância, a luz dos teus olhos tão intensa.
Na rua, a passar por entre os carros estacionados, a cruzar-se com caras sérias de gente fechada, a calçada suja, os manequins sem cabeça das lojas de roupa, os cheiros de sempre, não quis saber de mais nada.
Sentia-se cansada. O incómodo da consciência de que o seu namoro não estava bem existia há algum tempo e isso estava a tornar-se mais evidente. Mas não tinha certezas... não conseguia sentir nada vindo dele, dado o envolvimento emocional que os dois têm... o dom não funciona com ele.
“Se calhar exagerei na reacção...”
Tinham de clarificar a situação, ela tinha de saber o que se estava a passar com ele.
Dali seguiu para casa e, depois de dizer aos pais que estava muito cansada deitou-se na cama com o candeeiro de cabeceira aceso. Ainda tentou ler para se distrair mas não conseguiu. Virou-se para a janela e, na transparência alaranjada do cortinado, lembrou-se do fim-de-semana em Marvão, o primeiro que passaram juntos desde que se conheceram.
A paixão a arder-lhes no peito. Os corpos sempre colados, o contacto físico constante, as mãos a brincar umas com as outras. À noite, labaredas de prazer.
— Posso?
Desceu dos pensamentos e viu outra vez o cortinado alaranjado. E depois percorreu a penumbra do quarto até ver a sua mãe a espreitar, à entrada. Só lhe via a cabeça, estando o resto do corpo escondido pela porta.
— Claro, mãe, entra.
— Não queres comer nada? — A voz calma, a habitual tábua de salvação.
— Agora não, mãe, lanchei um copo de leite e queria terminar a digestão. Quando é que jantam?
— Olha filha, o jantar está feito. Jantamos quando vocês quiserem. — Conceição olhava para a filha como sempre olhou quando sentia que ela não estava feliz, com uma inquietação desmedida e com uma vontade incontrolável de esmiuçar a aflição que sabia que a sua cria estava a sentir, por forma a tranquilizar-se e poder fazer alguma coisa, quanto mais não fosse acalmá-la.
Tem a convicção de que, a partir do momento em que deitamos filhos ao mundo, nunca mais há sossego; mesmo antes, quando os filhos ainda estão no ventre, já tudo mudou.
O instinto maternal fica, desde essa altura, irreversívelmente aceso. Sempre que há alguma preocupação com os filhos, esta ideia surge-lhe mais clara do que nunca.
— Madalena — disse, fazendo uma pequena pausa antes de mergulhar no assunto, e sentindo, com uma inexplicável certeza, que a filha sabia o que a mãe lhe ia perguntar —, passa-se alguma coisa? — Nova pausa, com um olhar tão acolhedor e tão difícil de resistir.
Sentou-se à beira da cama e fez uma festa na cara da filha. — Eu sei que não estás bem, que há algum problema, porque tu não me pareces feliz, filha.
Mais uma pausa, desta vez muito breve, para logo depois começar no assunto a fundo. — Eu sinto que tu e o Vítor não andam bem, e isso tem-se reflectido no teu comportamento. Andas infeliz, tens comido pouco e estás mais irritadiça. O que é que se passa?
— Sei lá o que é que se passa. — Conseguiu suster as lágrimas e continuar. — As coisas estão diferentes, mãe. Não sei... parece que ele está mais distante, está a assumir uma postura que não é normal. Ainda nem casámos... Não é que depois do casamento seja aceitável, mas se uma pessoa já tem um comportamento destes antes de se casar, meu Deus, então como será depois! — O seu nervosismo fazia com que falasse a correr. — Eu pergunto para quê? Nada disto está a fazer sentido... eu já pensei tanto disparate, perguntei-me se ele tem alguém, já dei voltas à cabeça a tentar saber o que é que se passa e não consigo descortinar nada. Porque é que ele está diferente?
— Ó filha, calma. Diz-me uma coisa, já falaste com ele, já lhe perguntaste o que é que se passa?
— Não mãe, directamente não. Discuti com ele há bocado... — Os olhos transluziam. — Disse-lhe que estava farta.
Começou a fazer uma prega na colcha, com as mãos a tremer. — Ó mãe, já não é a mesma coisa, já não olha para mim da mesma maneira, não sinto a paixão que eu sei que ele sentia no princípio, mãe!
— Mas Madalena, eu acho que devias falar com ele. Como é que podes ter desconfianças, ainda para mais tão sérias quanto essas, sem falar com ele, sem ouvir o que ele tem para dizer. Falem com calma, abram o coração.
“Não é normal que duas pessoas que namoram não falem abertamente dos problemas duma relação que já tem anos. Quem sabe, até pode ser que ele esteja a passar por uma fase complicada.”
Conceição viu o olhar sério e um pouco perplexo da filha e tranquilizou-se por constatar que ela se acalmava. Pegou-lhe nas mãos e sorriu, irradiando ternura.
Estiveram assim por um breve momento, suficiente para que Madalena relembrasse a segurança que a mãe lhe transmitira ao longo da sua infância e adolescência, sempre que algo a perturbava.
— Quando quiseres jantar diz-me. — Levantou-se para sair. — Já me esquecia de te dizer que a Mafalda ligou, preocupada contigo, claro está, e disse que vem cá ainda hoje, se tiver tempo. Tens ali uma grande amiga.
— Eu sei mãe... eu sei.
Nessa noite Madalena teve um sono agitado. Viu o namorado a gritar-lhe, colérico e vermelho de raiva, com as veias do pescoço dilatadas e os punhos cerrados, mas não havia palavra, não havia som. Os pais discutiram numa cozinha com azulejos verde-pálido, que não era a de sua casa, e viu as pernas da mesa, colocada no centro da divisão, partirem-se devido à fragilidade da madeira provocada pela invasão de tropas de caruncho. Toda a loiça que estava em cima da mesa partiu-se e o chão de mármore ficou coberto de facas, todas elas espetadas, mas sem provocarem qualquer fractura. Como se o chão se tivesse transformado, de repente, em barro cru. A sua mãe chorava e afundava-se no barro, que se tinha transformado em lodo.
Só se lembrou do sonho uns minutos após ter acordado, desaparecendo, para sempre, da sua memória consciente.
Aproveitou o sábado para descansar.