Miguel Mósca Nunes
25.06.21
Capítulo IV
Início de Dezembro. Passados muitos meses desde a última vez, fomos sair à noite para o Bairro Alto. Meu Deus! Este era, há muitos anos atrás, um hábito muito ridículo, o de ir todas as sextas-feiras, em procissão, para a night. Às vezes penso nos comportamentos que tive ao longo da minha juventude e a conclusão inevitável aflora sempre, amarga. Fui, na verdade, condicionada pelos preconceitos inerentes ao meu grupo de amigos. As saídas à noite foram, quase sempre, motivadas pela posição no grupo, e não pelo puro prazer de sair e me divertir. Era in sair com os amigos e contar os acontecimentos e peripécias no dia seguinte. Sinto-me sempre desconfortável com estes pensamentos. O que me consola é que não fui a única a agir assim. Acho que com a maioria dos meus amigos da altura se passou o mesmo. E com a maioria dos adolescentes de agora. Sei que esta consciência acaba por chegar, mais cedo ou mais tarde. Se não chegar, é sinal de que sempre fomos genuínos, ou de que, o que é mais certo, ainda não crescemos e, provavelmente, continuamos com a mesma forma de estar, ridícula.
Sair à noite com os amigos era, agora, redentor, como que uma lavagem de alma. Era eu mesma, ao contrário do que acontecia há dez anos atrás. Que tranquilidade. Não queria provar nada a ninguém. E o grupo de amigos tinha sido expurgado. Nem metade lá estava.
Estava a ser uma noite mágica. Fomos jantar a um típico restaurante atascado, e aproveitámos todos os bocadinhos do tempo, que passava depressa. Saboreava toda a comida que estava a passar pelo prato, e sorvia toda a verborreia dos meus convivas. Estava a adorar os risos, a galhofa, os comentários, as ideias trocadas, a estupefacção em relação ao relato de tanta atribulação dos últimos tempos, a íntima e comum satisfação por ainda sermos um grupo de amigos.
Todos estávamos mudados. Mas tínhamos a mesma essência.
Madalena estava radiante, liberta, pela primeira vez, do pesadelo pelo qual tinha passado.
— Já viste o borracho em que se tornou o Filipe, desde que cortou o cabelo? — perguntou ela, entusiasmadíssima.
— Já, já. E também já reparei que pareces estopa, minha querida!
Riu à gargalhada e retorquiu: — Ó meu amor, a vida é assim, vão uns e vêm outros. — Mais gargalhadas, com o vigor dos vinte anos que já não tinha. Chegou-se para mim, olhando-me de modo intenso, e sussurrou: — Estou feliz minha querida. Obrigado por estares sempre lá... — Não conseguiu dizer mais nada, porque a emoção brotou. Chorámos.
— Olha, olha, estas duas estão bonitas, estão! — disse o João, ele também já um pouco entornado.
Este João era extraordinário. Estava-se a borrifar para a opinião dos outros, e reagia militantemente a qualquer manifestação homofóbica. Tinha a vantagem de ser enorme e musculado, o que fazia com que, normalmente, qualquer pensamento agressivo não passasse à acção. Normalmente…
Houve um episódio memorável no Hard Rock Cafe, sobretudo porque eu nunca tinha assistido ao bullying de um homem a outro homem, e também nunca tinha visto o João a reagir. Ao reparar na carinhosa festa que o meu amigo fez na cara do rapaz que estava a servir-nos os cafés, de quem já tinha sido namorado, um homem arruivado e encasacado, com um cachecol enrolado ao pescoço, sentado na mesa ao lado, disse, para quem o quisesse ouvir: “Olha agora, temos aqui gays”. “Se está incomodado com a minha presença, tem bom remédio”, retorquiu o João, sereno. Esta resposta fez ruborizar o estúpido, que se levantou e deu um empurrão ao meu amigo. Claro que o passo seguinte foi um knockout de um só murro. O néscio ficou estendido no chão. O segurança também era amigo do João e deixou-nos sair, perante o alarido que os amigos do fulano estavam a fazer: "Chamem a polícia!", gritavam.
Nesta noite de copos estava muito bem-disposto. Era bonito. Às vezes eu olhava para ele e desejava-o. E acho que ele sentia o mesmo. Mas nunca falamos sobre isso. A sensação que eu sempre tive era a de que ele também me desejava. Havia qualquer coisa na nossa troca de olhares que me dizia isso mesmo.— E como é que é, minha linda? Porque é que o teu mais-que-tudo não veio connosco? — perguntou ele à Madalena, já no final do jantar.
— Porque ele já não é o meu mais-que-tudo.
— Ham?! Acabaram?!
— Pois, já não namoramos.
— É pá, mas estiveram juntos tanto tempo…
— É assim a vida, o parvalhão já não gostava de mim. Foi o melhor para os dois.
— Sim, rapariga. E tu és linda de morrer e tens de te dar valor.
— És tão querido João, adoro-te!
— Mas é verdade! — disse. Fez uma curta pausa, para logo a seguir atirar: — Eu adoro-te como amigo, porque senão…
— Não sejas parvo! Alguma vez?! — disse a Madalena, fazendo com que o João arregalasse os olhos.
— Então? Era assim tão difícil para ti?
— Claro! Achas?! Adoro-te e não iria nunca estragar o que temos. E estavas a dizer isso mesmo, estavas a falar na nossa amizade…
— Pois, mas seria assim tão difícil?! — insistiu.
— Não sejas criança — disse a Madalena a rir à gargalhada. — Estás a sentir o teu ego enfraquecido, é?
O João estava já a acenar para o homem que tinha avistado ao longe, para fazer com que ele se dirigisse para a mesa onde estávamos sentados. Uns instantes depois João apresentou-o: — Malta, este é o Ricardo. Ricardo, estes são os amigos de que te falei, portanto, apresentem-se e estejam à vontade.
Ricardo era parecido com o João só no tamanho. Era loiro e tinha olhos verdes. O João era moreno e tinha olhos castanhos. Mesmo no Inverno, parecia acabado de vir da praia, sempre que nos encontrávamos com ele.
Quando o Ricardo se sentou ao lado do João, cumprimentaram-se com um beijo na boca sem qualquer constrangimento.
Este grupo de agora é, de facto, especial. Cada um faz a sua vida como bem entende e não se preocupa com a opinião dos outros. Não é muito comum haver este tipo de relacionamento entre amigos. Eu conheço pessoas que não funcionam assim no seu núcleo de amizades mais próximas. Mas nós fazemos mesmo um esforço para sermos transparentes uns com os outros.
— Portanto, não tenho hipótese… — segredou o João ao ouvido de Madalena. — Que pena…
— És mesmo um parvalhão — respondeu ela. — O rapaz aqui ao teu lado, e tu a dizeres-me estas coisas…
— Ele sabe como eu sou, e como tu és mulher, não tem mal…
— Olha que porco! — retorquiu. — Pois é meu querido, mas somos amigos e eu não vou, não vou mesmo, misturar as coisas! — respondeu com uma assertividade que não deixava qualquer margem para dúvidas. E ele sabia-o.
— Sabes que no outro dia encontrei um amigo que talvez gostasses de conhecer. É giro que se farta.
— Ai não! Não vão começar aquela fase de quererem arranjar-me namorado, pois não? — disse irritada. — Deixem-me sossegada!
— Calma rapariga, só me lembrei do rapaz. Chama-se André e é uma pessoa linda, por dentro e por fora.
— Está bem, deixa ser, deixa-o estar porra…
Entretanto, mergulhámos na noite, a percorrer vários bares. E antes do Natal não nos reunimos mais.