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Lately

Histórias, opiniões, desabafos, receitas...

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Histórias, opiniões, desabafos, receitas...


Miguel Mósca Nunes

10.09.21

 

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30 de setembro. No dia seguinte ao susto, os dois amigos quase não falaram durante o primeiro tempo de aulas. Mas, logo ao intervalo, abalaram da sala, preparados para debaterem o acontecimento do dia anterior. Queriam começar a conversar, mas chegou Margarida, a miúda mais estudiosa da turma, que lhes perguntou como tinha corrido a ficha de ciências.

 ― Consegui responder a tudo ― disse a garota, ao mesmo tempo que sorria para João, que considerava o rapaz mais giro da turma ― E vocês?

 ― Acho que me correu bué da bem ― respondeu João, apressado. ― Mas agora vamos comer qualquer coisa ao bar, não é Ricardo? ― perguntou, enquanto dava pequenas biqueiradas no pé do amigo, para ver se ele dizia alguma coisa, em concordância.

 ― Ainda bem ― disse Margarida. ― Também vou, assim tenho companhia.

 Claro que, em dez minutos, e com tanto paleio da colega, não tiveram mais oportunidade de falar sobre a sombra que tinham visto no dia anterior.

 No intervalo maior, sem se atreverem a ir para o tal pavilhão onde tinha tido lugar o acontecimento estranho, muito esquisito e mesmo assustador, que eles não conseguiam explicar, procuraram um local com um pouco de movimento, mas onde pudessem conversar sem que os outros alunos, ainda assim, se apercebessem do assunto.

 ― Mas tu viste o mesmo que eu Ricardo?! ― perguntou João, tentando disfarçar o pavor que estava a começar a sentir. ― Aquilo parecia uma pessoa… e os cabelos… e tinha um chapéu, de certeza que era um chapéu, daqueles de bruxa!

 ― É pá ― respondeu Ricardo, muito espantado ­―, o que é que estás para aí a dizer… uma bruxa?! ― Não queria acreditar no que tinha acabado de ouvir da boca do amigo.

 ― Ricardo ― disse João, começando a falar baixinho ―, eu até sonhei com aquilo. Eu vi muito bem a sombra e ainda não parei de me lembrar do barulho que aquilo fez, quando levantou voo.

 ― Levantou voo?! ― disse Ricardo, que começou a ficar vermelho do pânico que começara a sentir. ― Levantou voo?!

 ― Xiiiiu! ­― atirou João. ― Ninguém pode saber disto! Aquilo era uma bruxa, tenho a certeza!

 ― Achas mesmo? ― perguntou Ricardo, muito assustado. Nem queria acreditar que o amigo estava a colocar aquela hipótese.

― É bué estranho, mas tenho a certeza! ― acrescentou João, olhando o amigo nos olhos. E, de repente, lembrou-se. ― E a velha que está sempre a falar da bruxa?

 ― Sim… e então?! Eu nunca a vi ― disse Ricardo, arregalando os olhos. ― Dizem que a mulher é doida, portanto…

 ― Eu também nunca a vi, mas já me contaram sobre o que ela costuma dizer, e se calhar não é tão doida assim! ― rematou João.

 O assunto principal dos tempos livres, nesse dia, foi a bruxa, mas começaram a recuperar a vontade de pregar partidas, o que os deixava eufóricos.

 Nessa tarde não tiveram aulas, e resolveram ir para casa de Ricardo, porque seria ali o sítio ideal para mais uma barafunda, uma vez que se tratava de uma vivenda e não haveria perigo, pensaram eles, de incomodarem a vizinhança. Mas eis a razão principal: desta vez, as vítimas seriam os próprios pais, e a irmã, de Ricardo.

 Tinham recolhido dez grilos, que encontraram debaixo de dois tijolos, num terreno situado nas traseiras da escola. Guardaram-nos num frasco de vidro, cuja tampa foi perfurada com muito cuidado, para que os bicharocos pudessem respirar.

 Subiram ao primeiro andar da moradia. Entraram no quarto principal, e colocaram cinco grilos dentro da cama dos pais. Depois dirigiram-se ao quarto de Rita, uma adolescente que já não tinha grande paciência para as brincadeiras do irmão, e colocaram os outros cinco grilos dentro dos lençóis de flanela da cama colorida, coberta com uma colcha de patchwork.

 Os dois amigos foram, de seguida, andar de bicicleta, não adivinhando que tinham acabado de armar uma das mais inesquecíveis confusões das suas vidas.

 Eram dez e meia da noite. A Rita estava a lavar os dentes e preparava-se para ler, deitada na cama, até adormecer. Os desgraçados dos pais, Álvaro e Mimi, já estavam também na casa-de-banho, prestes a deitarem-se.

 O malandro do Ricardo fingia estar a dormir, de luz apagada, mas estava à espera, com o telemóvel em chamada estabelecida com João, para que o outro pudesse ouvir toda a reação.

― Espera que está quase… ― ia dizendo.

 Se foi obra do acaso ou da Providência, não sabemos. Mas o facto é que as três inocentes criaturas foram ao mesmo tempo para a cama, num sincronismo inacreditável.

 A partir desse momento, a confusão instalou-se naquela casa e nas redondezas. Foram tantos e tão altos os gritos que, naquela rua, toda a gente ficou em sobressalto, numa aflição tão grande, por não saberem de onde partia tamanha berraria.

― Ai, meu Deus, o que será que estão a fazer àquela gente?! ― dizia uma das vizinhas, acabando de descobrir de onde vinha o alarido. ― Vamos lá ajudá-los! Chamem a polícia!

 Nem Ricardo, nem João, do outro lado do telemóvel, estavam a acreditar em tamanha barafunda. O júbilo inicial transformou-se em alarme, quando começaram a ouvir ao longe as sirenes dos bombeiros. E quando a mãe passou no corredor, amparada pelo pai, aos ais, e a irmã logo atrás, num pranto, a arrastar-se com as mãos na cabeça, o alarme passou a arrependimento e pavor.

 O resultado tinha ultrapassado, por demais, todas as expectativas dos dois amigos. Até nos castigos que o Ricardo levou. Sem televisão, sem tablet e sem computador durante um mês, muita sorte teve em não ficar sem o telemóvel. Mas estes castigos não faziam grande diferença, porque do que ele mais gostava era da rua, da bicicleta e da liberdade de andar sempre para todo o lado com o seu melhor amigo João.

 Estavam a um mês do dia das bruxas.

 

In "Merinda", Miguel Mósca, Edições Vieira da Silva, 2019

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