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Histórias, opiniões, desabafos, receitas...

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Histórias, opiniões, desabafos, receitas...


Miguel Mósca Nunes

06.08.24

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De acordo com o combinado, os dois amigos estacionaram as bicicletas mesmo em frente ao portão da Dona Leucádia, às dez para as três da tarde. Entretanto, ela já os estava a ver pela janela do quarto e abriu-a para lhes pedir que entrassem e colocassem as bicicletas dentro da propriedade, para que não fossem roubadas. Conforme tinham prometido, foram equipados com ténis e agasalhos, e levaram as mochilas, com sandes e garrafas de água, às quais Dona Leucádia juntou umas madalenas de maçã e canela.

 Enquanto esperavam que a dona da casa desse uma volta às várias divisões, para verificar se as janelas estavam todas fechadas, sentaram-se na cozinha e foram comendo o que estava por ali. Avelãs, passas, bolachas de amêndoa… os dois garotos pareciam umas trituradoras de comida.

 Eram três e meia da tarde quanto saíram de casa da velhota e iniciaram o percurso, sempre com as indicações de Dona Leucádia. Demoraram cerca de trinta minutos para saírem do Jerumelo e chegarem à estrada principal, que atravessaram. A partir daquela altura, entrariam na floresta. E foi o que fizeram.

 Percorreram uns escassos metros, e lá estava a coruja branca, pousada num pinheiro. A ave estava imóvel, com os seus olhos verde-escuros a observá-los.

 ― Dona Leucádia, veja quem está ali, naquele pinheiro ― disse João, fazendo com que Ricardo também olhasse na mesma direção.

 ― Credo, que coisa esquisita! ― exclamou Dona Leucádia. ― Ela acompanha-me sempre nestas idas a casa da Merinda. Sempre, sempre…

 ― É mesmo esquisito! ― afirmou Ricardo. ― Eu acho até que é assustador.

 ― Assustador?! ― perguntou João, querendo que Ricardo esclarecesse melhor o que queria dizer.

 ― Sim! Então, se a coruja aparece sempre que a Dona Leucádia vai a casa da bruxa e, ainda por cima, já a vimos a espreitar para dentro de casa…

 Quer João, quer Dona Leucádia acharam que Ricardo tinha razão. Havia qualquer coisa de muito estranho, assustador mesmo. De repente, a presença da coruja fê-los sentir um grande incómodo, levando-os a pensar a mesma coisa: o animal estava ali por uma razão qualquer, que eles não compreendiam, mas que existia.

 ― Será que ela nos está a vigiar?! ― questionou Ricardo, cortando os pensamentos dos outros dois.

 ― Credo, filho! Eu nem quero pensar numa coisa dessas! ― respondeu Dona Leucádia.

 ― Eu não a quero assustar, mas que é muito estranho, lá isso é ― concluiu Ricardo, enquanto observava a coruja branca. ― Olhem para aquilo, nem se mexe.

 Mas a seguir mexeu-se. Levantou voo, exibindo um deslumbrante batimento de asas, e os três exploradores ficaram a admirar a cena.

 ― Não acham que devemos continuar? ― perguntou João, tentando desviar a atenção do assunto assustador. ― Estamos a perder tempo, aqui parados, a olhar para uma coruja.

 ― Tens razão, filho, vamos continuar, que isto ainda leva algum tempo.

 ― Quanto tempo, Dona Leucádia? ― perguntou Ricardo.

 ― Depende… se a coisa correr bem, é para aí uma meia hora. Se a coisa correr mal…

 Os dois amigos entreolharam-se e fizeram, ao mesmo tempo, uma expressão de preocupação. «A aventura pode correr muito bem, ou muito mal…», repensou João, um pouco irritado com a resposta de Dona Leucádia. Estava a acreditar mais na segunda hipótese.

 Começaram a subir uma espécie de ladeira, com eucaliptos de um lado e do outro, onde existiam alguns troncos caídos que tiveram de pular. Dona Leucádia, para a idade que aparentava ter, tinha uma agilidade espantosa. Teve tanta facilidade quanto a dos dois jovens, quando se tratou de passar por cima dos troncos, coisa que estes acharam estranhíssima. Aliás, desde que tinham avistado a coruja que estavam a achar tudo muito estranho.

 Repentinamente, cheirava a chocolate.

― Hummmmm, que cheirinho tão bom… É este o cheiro que às vezes sentimos na Malveira ― disse João, a salivar.

 ― Sim, claro! A Merinda está ocupada há umas semanas largas a preparar tudo ― disse Dona Leucádia, não se apercebendo do olhar espantado dos ouvintes.

 ― A preparar tudo, o quê? ― perguntou Ricardo.

 ― Ora essa, os chocolates! ― exclamou Dona Leucádia, como se já tivesse falado com os rapazes sobre o assunto.

 De facto, já tinha falado imensas vezes sobre os chocolates, mas com outras pessoas da vila, que não acreditavam numa única palavra que dizia. Com os rapazes falara de vários pormenores, exceto deste.

 ― Mas que chocolates, Dona Leucádia? ― quis saber João, já um pouco impaciente.

 ― Os chocolates que as crianças recebem no dia 31 de outubro, por conta das partidas que foram fazendo. E também no Natal!

 ― Não posso acreditar! A sério?!

João estava excitadíssimo, lembrando-se dos chocolates que ainda tinha em casa.

 ― É a Merinda quem os prepara e os distribui ― completou Dona Leucádia.

 ― Por isso é que andou toda a gente doida, a querer saber quem tinha colocado os chocolates nos parapeitos! ― exclamou Ricardo.

 ― Sim! Já estavam com grandes teorias, a dizer que os pais tinham combinado tudo entre eles ― completou João. ― Afinal é a bruxa!

 ― Mas há amigos nossos que não receberam nada! ― disse Ricardo, intrigado.

 ― Isso é porque não pregaram uma única partida ― explicou Dona Leucádia.

 Os garotos, se fossem balões, há muito que teriam rebentado de tanto entusiasmo. Andaram mais uns dois quilómetros, sempre a conversarem com regozijo, porque finalmente estavam a perceber que os cheiros misteriosos que nos últimos tempos existiam na vila também tinham uma explicação. A apreensão causada pela coruja já tinha desaparecido.

De repente, estacaram os três. No caminho, estava um lobo, com um tamanho que os rapazes não julgavam possível naquela espécie, parado, a olhar para eles. Sem qualquer explicação, viram Dona Leucádia avançar até ao animal e começar a falar.

 ― Olá, meu menino! Tão querido o menino da avó. ― Dona Leucádia fazia festas e segurava o focinho do lobo. ― Quem é o menino mais lindo da sua vovó?!

 João e Ricardo estavam agora de queixo caído. Aquele ser que estava ali a receber festas teria mais meio metro do que Dona Leucádia, se se pusesse de pé, apoiado nas patas traseiras.

 ― Meus queridos, venham conhecer um dos meus amigos da floresta ― disse, felicíssima. ― Este acompanha-me de vez em quando. E não é estranho como a coruja ― concluiu, rindo-se à gargalhada.

 Com cautela, os garotos foram-se aproximando, mas à medida que estavam mais perto mais tranquilos ficavam. Até que deram por eles junto do animal, a fazer-lhe festas. A partir desta altura, caminharam sempre a quatro. Aos quarenta minutos de percurso, verificados no relógio de João, Dona Leucádia estava admirada com o facto de o caminho se estar a fazer tão bem, como quando o fazia sozinha. Habitualmente, quando ia com outras pessoas, as dificuldades começavam logo de início e até àquela altura ainda não tinham surgido as malditas falhas de memória.

 ― Dona Leucádia, estamos quase a chegar? ― perguntou João. ― É que já passou meia hora…

 ― Para espanto meu, parece que as coisas estão a correr muito bem. E já estou com fome.

 Resolveram fazer uma pausa para comer. E o lobo também lhes fez companhia, deliciando-se com as madalenas que Dona Leucádia lhe ia dando à boca. Uma considerável boca.

 Passado algum tempo, não se sabe quanto pois os relógios dos três exploradores tinham parado, para seu enorme espanto, retomaram o caminho e caminharam bastante até desembocarem numa clareira. Os olhares das três criaturas ficaram focados numa porta gigantesca, localizada a escassos metros dos seus pés.

 João e Ricardo não queriam acreditar no que estavam a ver.

 ― Meninos! Meninos! ― exclamou Dona Leucádia, felicíssima, com as faces roborizadas pelo entusiasmo. ― É a primeira vez! A primeira vez que consigo trazer aqui alguém!

 ― Então, e agora? ― perguntou Ricardo, olhando surpreendido para Dona Leucádia, que continuava a esbracejar e a voltear, parecendo uma adolescente a dançar, frenética, no baile de finalistas da escola.

 ― Nunca, mas nunca, tinha conseguido cá trazer alguém!

Dona Leucádia continuava naquele frenesim rodopiante.

 ― Vamos lá bater? ― perguntou João, num misto de receio, curiosidade e entusiasmo.

 ― Bater? ― Dona Leucádia parou. ― Oh, sim, bater… Sim, vamos bater à porta, claro.

 ― Tem certeza de que a Merinda não nos faz mal? ― perguntou Ricardo, com uma expressão carregada de quem estava com medo.

 ― Fazer mal, meu querido? ― perguntou, espantada, a velha senhora. ― Alguma vez?! A Merinda é um doce de pessoa. Vamos lá!

 Caminharam em direção ao casarão. Naquela clareira havia bastante folhagem no chão de terra ocre, e os três iam pisando alguns ramos secos e quebradiços, emitindo estalidos aqui e ali. O dia tinha escurecido, e o aspeto do arvoredo estava medonho. Pararam a alguns centímetros da imponente porta castanha escura, cheia de veios, alguns muito profundos.

 Dona Leucádia segurou no pesado batente de ferro ferrugento em forma de lua e, com algum esforço, fez soar três grandes pancadas.

 

in Merinda, Miguel Mósca, Edições Vieira da Silva, 2019


Miguel Mósca Nunes

07.08.23

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Esta é uma receita deliciosa para apresentar, por exemplo, na véspera de Natal (risos e gargalhadas, sininhos, o Bing Crosby a cantar "It's Beginning To Look A Lot Like Christmas" e a gata a subir para a árvore), cujo nome é inspirado na região montanhosa do sudeste da Alemanha. Também é um excelente bolo de aniversário, rico, cheio de sabores e contrastes porque tem álcool, chocolate preto e um doce chantilly.

"Ai que o bolo não é apropriado para criancinhas, tenho a casa cheia de seres gritantes a pular por todo o lado, o que é que eu faço?!"... paciência! Quando muito, deixam de pular por umas horas. Não estamos a falar de Xanax ou de Lexotan, não é verdade?

Aproveitem e deliciem-se!

 

Ingredientes

Chantilly

600 ml de natas
100 g de açúcar em pó
4 folhas e meia de gelatina (para dar consistência)
20 ml de essência de baunilha

 

Recheio de ginjas e mistura de rum

1 frasco de cerejas ou ginjas em calda com aproximadamente 700 g, descaroçadas (utilize 125 ml da calda e deixe a restante no frasco)
200 g de açúcar
80g de amido de milho
40 g de açúcar e 100 ml de rum (para juntar à calda que sobra)

 

Massa

4 ovos
250 g de açúcar
180 ml de óleo vegetal
120 ml de água quente
40 g de cacau em pó
180 g de farinha
40 g de amido de milho
10 g de fermento em pó
5 g de bicarbonato de sódio
5 g de sal

 

Preparação

Começe pelo recheio, colocando 125 ml da calda, as ginjas, o açúcar e o amido ao lume, num tacho, até engrossar. Reserve para arrefecer e coloque no frio. À calda que sobrou, junte 40 g de açúcar e 100 ml de rum, feche o frasco com a respectiva tampa e coloque também no frio.

Entretanto, prepare o bolo, juntando os ovos, o açúcar, o óleo, o cacau e a água quente. Misture tudo com uma varinha ou num copo misturador, por um ou dois minutos. Junte a farinha, o amido, o sal, o fermento e o bicarbonato e misture novamente até incorporar. Leve ao forno pré-aquecido a 180º, em duas formas untadas e enfarinhadas (de preferência com papel vegetal no fundo), por 40 minutos. Desenforme e deixe arreferer.

Quando o bolo estiver à temperatura ambiente, e o recheio de cerejas e a mistura do rum estiverem bem frios, prepare o chantilly. Coloque as folhas de gelatina em água fria, até amolecerem, e reserve cerca de 20 ml de natas num recipiente.

Bata as natas bem frias em alta velocidade, e vá juntando o açúcar em pó e a essência de baunilha, parando de bater quando estiverem bem consistentes. Escorra muito bem as folhas de gelatina, leve os tais 20 ml de natas ao micro-ondas para aquecer e junte a gelatina, mexendo para dissolver. Incorpore a gelatina no chantilly, batendo novamente para incorporar. Reserve no frio.

Divida os dois bolos em duas partes e monte o conjunto, dispondo uma primeira parte no prato, regando-a com a mistura do rum, e espalhando uma camada de chantilly e outra de recheio de ginjas. Repita o processo, até colocar a quarta parte de bolo, que também deverá ser regada. Cubra toda a superfície do bolo com chantilly e decore com raspas de chocolate preto, a gosto.

Coloque o bolo finalizado no frio, e espere umas horas até servir.

À primeira garfada, vai desejar estar perdido numa qualquer floresta alemã, longe, bem longe das preocupações e tarefas infindáveis do dia-a-dia.


Miguel Mósca Nunes

06.12.22

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Esta torta maravilhosa é excelente para fazer parte da mesa de Natal. Uma torta saborosa, com um intenso aroma a laranja, requintada e com uma textura suave, vai enriquecer a lista de doçaria para a consoada.

O Marco tem aqui um ex-líbris das suas receitas, que me faz lembrar as noites de Natal da minha adolescência, quando os convidados já se tinham ido embora, e ficava a ver a programação da RTP, e a comer as iguarias dispostas numa mesa em tons de vermelho.

 

Ingredientes:

  • 500 g de açúcar
  • 50 g de farinha
  • 15 g de fermento em pó
  • 2 laranjas grandes (raspa e sumo)
  • 12 ovos

 

Preparação:

Misture o açucar, a farinha e o fermento e adicione a raspa e o sumo das laranjas. Mexa bem.

Junte depois os ovos e misture muito bem.

Forre um tabuleiro com papel vegetal e unte o papel com manteiga.

Verta o preparado na forma e leve a cozer, em banho-maria, em forno pré-aquecido a 220 graus, por, aproximadamente, 30 minutos. Sugiro que ferva a água para controlar melhor o tempo de cozedura.

Retire do forno, desenforme para uma superfície forrada a papel vegetal coberto de açúcar e enrole a torta ainda quente.

 

Como estamos nesta época festiva, pode decorar a torta com apontamentos celestiais.

Delicie-se!

 


Miguel Mósca Nunes

02.12.22

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Volto a escrever por aqui, depois de uma semana de reflexão, após um acidente de viação que me deixou muito em baixo. Felizmente, não houve danos físicos. A vida continua e temos de nos reerguer e reinventar. Não nos podemos deixar abater.

A vida é generosa, apesar de, muitas vezes, não conseguirmos ver as bênçãos que temos e os sinais de que tudo está bem e de como somos protegidos.

Tudo o que nos acontece tem, aparentemente, um sentido ou significado - um propósito. Eu acredito nisto. E sei que, mais cedo, ou lá mais para a frente, irei perceber a razão de ser de certos acontecimentos. 

Estamos no Natal, e tenho de recorrer àquilo que demonstro desde sempre, que é a profunda satisfação de saber que me vou encontrar com a minha essência.

E tenho de agradecer. A gratidão apazigua-nos, substitui a amargura e o negativismo que pode tentar a sua sorte no açambarcamento da nossa alma.

“O navio da minha vida pode, ou não, estar navegando por mares calmos e tranquilos. Os dias desafiadores da minha existência podem, ou não, ser brilhantes e promissores. Em dias tempestuosos ou ensolarados, em noites gloriosas ou solitárias, mantenho uma atitude de gratidão. Se insisto em ser pessimista, há sempre o amanhã. Hoje eu sou abençoada”. - Maya Angelou.

Feliz Natal!


Miguel Mósca Nunes

09.11.22

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Sim, já cheira a Natal!

Cá em casa há aroma a canela e erva-doce, das duas fornadas de broas dos últimos dias. Mas o mais importante é o Espírito de Natal, que eu espero vir a sentir este ano. Quero sentir a calma, o apaziguamento, o entregar os pontos, um sentimento que me preenchia todos os anos e que, nos últmos anos, tem andado ausente.

Quero sentir que, apesar de todos os contratempos, de todo o rebuliço, de toda a azáfama, o que é mesmo importante é o Amor, são as pessoas que amamos e a marca que nelas deixamos.

O Natal é uma época de partilha, em que abrimos os nossos corações.

 


Miguel Mósca Nunes

04.11.22

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A violência obstétrica existe! E eu sei, porque aconteceu connosco, há vinte anos atrás.

23 de Setembro de 2002, uma hora da madrugada. Dores, que tinham começado na véspera, por volta das nove horas da manhã. 

 - Vamos já para a maternidade? 

 - Não. Vamos esperar e continuar a controlar o tempo entre contracções. - Já lá tínhamos estado às dezassete horas do dia anterior e mandaram-nos embora. A especialista* de preparação para o parto enchera-nos os ouvidos, a dizer que seria muito melhor aguardar em casa, porque entrando na box seria uma espera mais difícil.

 - Ok, vamos tentar dormir mais um pouco.

Às três da manhã, as dores estavam mais fortes e fizeram-nos levantar e arrancar, novamente, para a maternidade. Assim ficariamos mais perto.

Às cinco, a minha mulher estava a vomitar numa rua contígua à Maternidade Alfredo da Costa, ao mesmo tempo que passava um carro-patrulha da Polícia de Segurança Pública, com um trio de agentes espantados. A partir daqui, e nesta sequência absurda de eventos, o nascimento da nossa filha tornou-se uma viagem muito pouco digna de um país civilizado.

Após mais algum tempo de hesitação para entrar nas urgências, com a ideia de que quanto mais tarde, melhor, a martelar nas nossas cabeças, e por não aguentar de dores, lá deu entrada a grávida, a desamparada e muito bem adestrada grávida, às oito da manhã. Só me foi permitido ir para junto da minha mulher às dezoito horas - chamo a isto alienação parental no parto.

Depois de mais de vinte e quatro horas de trabalho de parto, com uma epidural dada ao meio-dia, que entretanto perdeu efeito, sem possibilidade de ser realizada uma cesariana (bloco operatório entupido) e sem a presença de um médico, nasceu a minha filha, às vinte e duas horas e quinze minutos, pelas mãos de uma enfermeira-parteira de quem não recordo o nome, mas que teve um papel essencial para que aquele ser saísse rapidamente da barriga da mãe antes de asfixiar até à morte.

Não houve capacidade, precisamente por falta de meios, para perceber que a minha filha tinha o cordão umbilical em dupla circular à volta do pescoço,  o que fez com que o parto se tivesse, perigosamente, prolongado. Não é necessário adjectivar o que a minha mulher passou, pois não?

Isto aconteceu porque os serviços de obstetrícia eram manifestamente insuficientes, e estavam entupidos de mulheres a precisar de parir, com um bloco operatório cheio, com falta de pessoal médico e meios para acudir às situações críticas.

Aquele ser maravilhoso, na sequência de um parto surreal, foi internado nos cuidados intensivos com um prognóstico reservado que indicava menos de 50% de hipóteses de sobreviver. Contudo, esses cuidados intensivos, com a ajuda determinante de Deus, salvaram-na. Saiu, milagrosamente, daquele lugar, passados dez dias.

Um lugar onde não existem urgências dignas, e em que as parideiras ficam horas à espera, a gritar de dor. Não havia necessidade, tendo em conta a gravidez maravilhosa. Naquela UCI, os profissionais de saúde fizeram tudo o que tinham ao seu alcance, com tão poucos meios e recursos. 

A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP) refere o seguinte: «Apesar de bastante comum, a violência obstétrica continua a ser uma forma de violência pouco reconhecida. A violência obstétrica é a violência contra as mulheres no contexto da assistência à gravidez, parto e pós-parto. As formas mais correntes de violência obstétrica incluem abusos físicos ou verbais, práticas invasivas, uso desnecessário de medicação, intervenções médicas não consentidas, humilhação, desumanização e recusa de assistência ou negligência pelas necessidades da mulher». Contudo, é fundamental reforçar que este conceito contempla a violência obstétrica sistémica, isto é, a ausência de condições materiais e humanas que promovam uma assistência na gravidez, no parto e pós-parto, segura e digna.

Diz ainda que «O inquérito "Experiências de Parto em Portugal", realizado pela APDMGP e ao qual responderam mais de 3.800 mulheres, revela que 43,5% das mulheres inquiridas não tiveram o parto que queriam».**

Das conclusões do referido inquérito pode ler-se que «mais de um décimo das mulheres não se sentiu respeitada pelos profissionais de saúde, mais de um décimo considerou que os profissionais de saúde não comunicaram de forma afável e positiva, 14,3% referem não ter sido ouvidas no que tinham a dizer/pedir, 15,3 % não se sentiram seguras durante o parto e 13% não se sentiram apoiadas e cuidadas». No nosso caso, quem assistiu ao parto não poderia, nunca, fazer melhor, dadas as circunstâncias em que estávamos, todos, envolvidos. Reitero que fomos sujeitos a uma ausência de cuidados, a uma falta de assistência, que é sistémica.

Perante os recentes acontecimentos, relacionados com a crise nas urgências de obstetrícia, temo que as condições precárias do Serviço Nacional de Saúde tenham piorado, aumentando significativamente o risco de violência obstétrica, com consequências que podem ser muito graves.

Vinte anos depois...

* enfermeira que nos deu as aulas de preparação para o parto (o mesmo que "lavagem cerebral para não darmos muito trabalho ao pessoal da MAC"), curiosamente, num apartamento convertido em gabinetes, situado perto da Maternidade Alfredo da Costa. Esta criatura verbalizava muitas vezes que não valia a pena gritar...

**  inquérito realizado em 2015.

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