Capítulo I
Guardamos as melhores recordações, mas valorizamos muito mais as más. Não sabemos bem porquê, mas as experiências negativas afectam-nos de uma maneira mais forte, deixando marcas profundas que se podem manifestar de forma incessante enquanto nos lembrarmos delas. Tudo o que é mau possui uma força maior, uma tonalidade negra que custa limpar, e que a brancura linear do tempo não apaga. Vamos ficando mais velhos e só quando é tarde demais é que tomamos consciência de que teria sido simples ter assumido outra postura perante os problemas. Quando a tempestade já passou.
Surgem também dúvidas sobre o caminho percorrido. Poderia ter sido outro mas, quando surge a insatisfação, as decisões adequadas para que fosse diferente já não podem ser tomadas. Tudo tem o seu tempo, todos os instantes das nossas vidas são de decisão, embora na maioria das vezes estejamos a agir sem pensar na verdadeira importância das escolhas que fazemos.
A Madalena é a minha melhor amiga. Sonhadora, intuitiva e perspicaz. Vale-se muito daquilo que é chamado o sexto sentido. Talvez seja característica que herdou da mãe, talvez seja produto do facto de ter sido uma criança calada, atenta e observadora, ficando a conhecer em profundidade os comportamentos e as reacções humanas, sem ter consciência disso, tornando as pessoas demasiado previsíveis aos seus olhos, ou então, quem sabe, possui capacidades sensoriais incomuns, típicas de um número cada vez maior de almas, facultadas, talvez, por alguns espíritos que a alfinetam amiúde. Poderá ser a conjugação de tudo isto.
Sente, com muita frequência, uma profusão de sentimentos a invadi-la quando está perto de certas pessoas; adivinha-lhes os pensamentos, sabe quais os juízos que formulam, as suas opiniões.
Nem sempre esta aptidão funciona. Se é certo que há pessoas que a bombardeiam, outras há que são uma fortaleza, não se conseguindo receber delas quaisquer indícios da sua essência. Por outro lado, trata-se de um fenómeno espontâneo, que nem sempre funciona.
Nos últimos tempos este fardo tem crescido, está mais intenso e torna-se muito incómodo quando é massacrada por frustrações e invejas, considerações mesquinhas ou demonstrações de malvadez, pois fica abaladíssima. Este dom está a tornar-se muito pesado.
Tem reflectido muito sobre o seu passado, sobre a natureza das pessoas que se têm cruzado no seu caminho, e sobre qual será o seu futuro. Paira no seu pensamento a concepção de que, por vezes, é melhor ser-se menos atento aos pormenores, menos perscrutador e menos sensível. Se não nos apercebermos do verdadeiro âmago dos que convivem connosco, embora vivamos iludidos, somos mais felizes.
Também se tem interrogado sobre se vale a pena dizer o que pensa, porque a maioria das pessoas não aceita esta maneira de ser. Já perdeu alguns amigos.
Chega, contudo, sempre à mesma conclusão: vale a pena privilegiar a verdade, pese embora o facto de haver sempre alguns dissabores.
Está mais conciliada com a idade e com as primeiras rugas e não se preocupa tanto com a perda da brancura dos seus dentes. De qualquer maneira, não dispensa os três cafés diários.
O que lhe faz ainda muita confusão é a gordura que acumula na barriga, merda, tão difícil de perder. Gosta tanto de chamuças, e de empadas, e de rissóis, e de croquetes, em particular os que são servidos como entrada nos casamentos. Esses parecem não ter o efeito calamitoso que costumamos ver nos que estão à venda nas pastelarias, pelo menos na altura não nos lembramos... será por não pagarmos nada por eles?
Apesar de tudo, mantém alguma forma física devido à dança que pratica duas vezes por semana e, com um metro e setenta de altura, é bastante atraente. Tem a particularidade de possuir uns olhos castanho-esverdeados, que se conjugam muito bem com o seu cabelo castanho com reflexos dourados.
Sempre batalhou por conseguir uma situação profissional estável e que lhe trouxesse uma boa remuneração. Licenciou-se em Direito, em Lisboa, mas cedo percebeu que as leis não a satisfaziam. Ficou muito desiludida com a justiça que se faz nos tribunais e, mais importante do que isso, chegou à conclusão de que a sua vocação não era aquela que tentou alimentar durante anos com a ajuda bem-intencionada dos seus pais.
Chegou a exercer advocacia, primeiro enquanto estagiária, com um patrono que não lhe deu a mínima hipótese de fazer carreira com ele e, depois, já com a sua cédula profissional, num escritório de um advogado com muita experiência mas poucos escrúpulos, no qual foi explorada.
Mal paga e sendo utilizada para quase todo o serviço, desistiu ao fim de alguns meses preenchidos de falsas esperanças. “Vou passar alguns clientes para a doutora...” ou “temos de lhe fixar um salário, eu vou falar com o meu colega...”, sempre a mesma conversa morna e sem vontade acerca do que nunca acontece.
Por que razão houve a tendência de contrariar o verdadeiro sentido da sua vida ela ainda não percebeu. Apenas sabe que há um chamamento cada vez mais forte por parte da arte, da pintura, da escultura, do canto, da culinária... tudo o que sempre adorou fazer, desde que tem consciência de si própria. Não sabe porque razão contrariou esses talentos e porque é que meteu na cabeça que viria a ser advogada. Não sabe porque é que terminou o curso, quando no segundo ano já sentia que não era aquele o seu futuro. Que futuro seria o seu? Não sabia.
Está a trabalhar como empregada de escritório numa empresa de recursos humanos tendo, todos os dias úteis da semana, o mesmo ritmo que a está a sufocar.
E a sua vida amorosa… ai a sua vida amorosa…