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Lately

Histórias, opiniões, desabafos, receitas...

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Histórias, opiniões, desabafos, receitas...


Miguel Mósca Nunes

19.11.24

Camões,_por_Fernão_Gomes.jpg

Luís de Camões  
[Lisboa, 1524? - Lisboa, 1580] 

Esta biografia é transcrita do site da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), que remete para o Centro de Documentação de Autores Portugueses (Maio de 2004)... sim, porque neste blog não há plágio!

"Poeta épico e lírico, considerado o maior poeta de língua portuguesa de todos os tempos, a sua biografia é ain­da hoje dificílima de traçar, dada a escassez de elementos exactos que sobre ele possuímos. A primeira biografia do poeta só aparece trinta e três anos depois da sue morte, inserta por Pedro de Mariz na edição d' Os Lusíadas (Lisboa, Pedro Crasbeek, 1613), onde vem acompanhada dos comentá­rios de Manuel Correia, já então falecido, que diz ter sido amigo de Camões. É em domínio de incertezas que se aponta a cidade de Lisboa como o lugar mais provável do seu nascimento, em 1524 ou 1525, havendo seis outras localidades que lhe disputam a honra. Coimbra é uma delas. Supõe-se que aí tenha estudado, embora não haja qualquer registo comprovativo de que tenha frequentado a Universidade. Filho de Simão Vaz e de Ana de Sá, como aparece nos documentos oficiais, ou Ana de Sá de Macedo, como ela também usa­va, Luís de Camões teria ido para Coimbra, onde havia um D. Bento, prior do Mosteiro de Santa Cruz e cancelá­rio da Universidade, seu tio, que lhe poderia ter dirigido a educação.

Camões pertence a uma aristocracia empobrecida, que procura no serviço das armas um modo de vida. Crê-se que, na mocidade, tenha estado em Ceuta. Severim de Faria (Discursos Vários Políticos, Évora, 1624), servindo-se de ecos biográficos encontrados na poesia de Camões, infere que ele esteve em África. E Aubrey Bell indica como datas prováveis: 1547-1548 para a partida e 1549 para o regresso a Lisboa. Teria sido em África que um pelouro lhe vazou um dos olhos nalgum recontro com os Mouros. De certeza, sabe-se que a deformidade ocorreu antes da sua partida para a Índia, pois a ela se refere numa carta que de lá escreveu como sendo facto conhecido. Em Lisboa leva, ao que parece, uma vida de estúrdia, tendo sido preso no Tronco da cidade por haver assaltado, numa briga, com outros companheiros seus, um servidor do paço. É perdoado por D. João III em 1553, como o atesta um documento que sugere a sua ida para a Índia.

Do que fez no Oriente durante dezassete anos nada está documentado. Parece que participou (Novembro de 1553) numa expedição à costa do Malabar e esteve, por algum tempo, no cabo Félix, ou Guardafui, incorporado, ao que se crê, no cruzeiro ao estreito de Meca, entre Fevereiro e Outubro de 1555, feito pela armada de Manuel de Vasconcelos. É depois destas duas expedições que se situa o seu período na China (Macau). Em data que é impossível precisar, Camões naufragou nas costas do Camboja, ou ac­tual Vietname, salvando das águas o manuscrito d' Os Lu­síadas, como ele próprio declara (X, 128). Ao cabo de três anos de serviço militar, provavelmente em 1556, Camões foi licenciado, tendo depois aceitado, tanto quanto é pos­sível julgar, o desempenho de funções públicas. À roda de 1568, decerto em busca de melhor sorte, vem para Moçambique, onde Diogo do Couto o encontra, vivendo na maior indigência (Década IX, cap. 20, Lisboa, 1786). O poeta passava então o tempo a aperfeiçoar Os Lusíadas e trabalhava numa obra intitulada Parnaso de Luís de Ca­mões, que lhe furtaram. Couto e os amigos do poeta, de escala em Moçambique, quotizam-se, pagam-lhe as dívi­das e a viagem, e com ele seguem para o Reino, arribando ao porto de Cascais na Primavera de 1570 (Couto, Década VIII, cap. 28, Lisboa, 1786).

A 24 de Setembro de 1571, Camões obteve de D. Sebastião o alvará que lhe permite imprimir Os Lusíadas por um período de dez anos. Em 1572 sai a obra, em Lisboa, em casa do impressor António Gonçalves. E, em 28 de Ju­lho do mesmo ano, D. Sebastião concede ao poeta uma tença anual de 15000 réis, a pagamento desde 12 de Março, pelos serviços que este lhe havia prestado na Índia, e não apenas para o compensar pela publicação d' Os Lusía­das. Esta tença foi paga irregularmente, mas sempre na sua totalidade, dela beneficiando, por ordem de Filipe II de Espanha, a mãe do poeta, que lhe sobreviveu. É graças a esta documentação que sabemos que a morte de Camões ocorreu em Lisboa, a 10 de Junho de 1580.

Em vida, além d' Os Lusíadas, Camões publicou apenas três composições. A primeira é uma ode laudatória, escrita na Índia e dedicada a Garcia de Orta ("Aquele único exemplo"), que aparece nos Colóquios dos Simples e Dro­gas (Goa, 1563). As outras duas peças – a elegia «Depois que Magalhães teve tecida» e o soneto «Vós ninfas da gan­gética espessura» – saíram na História da Província de Santa Cruz (Lisboa, 1576), de Pêro de Magalhães de Gân­davo.

O Parnaso de Luís de Ca­mões, em que ele trabalhava, foi-lhe roubado e as edições que dele conhecemos são todas edições póstumas. As Ri­mas (Lisboa, 1595) são a primeira edição da lírica, feita a partir de cancioneiros manuscritos, que, não obstante o cuidado de Fernão Rodrigues Lobo Soropita, seu organiza­dor anónimo, contém imperfeições graves e se encontra incompleta.

Das edições póstumas, o teatro de Camões foi a primei­ra obra a aparecer, incluído no volume Primeira Parte dos Autos e Comédias Portuguesas (Lisboa, 1587), onde a maior parte cabe a António Prestes. Os dois autos-comédias, Anfitriões e Filodemo, figuram na colec­tânea como da autoria do poeta, nada se sabendo, porém, do texto que lhes serviu de base. Que a censura inquisito­rial exerceu cuidadosa vigilância não há hoje dúvida, por­que no Cancioneiro de Luís Franco Correia, 1557-1589, em manuscrito, se encontra uma versão do Auto de Filo­demo (fol. 269r-286v), que é muito mais ousada na crítica institucional e dos costumes do que a do texto publicado. De acordo com a informação exarada no Cancioneiro, po­de inferir-se que o auto foi levado à cena em Goa, por al­tura dos festejos que, em 1555, assinalaram a investidura de Francisco Barreto no cargo de governador, cujas funções desempenhou sem interrupção até 1558.

A epopeia camoniana, baseada literalmente na viagem de Vasco da Gama à Índia (1497-1498), é um poema de grande complexidade estética, onde a crítica moderna tem visto não apenas a história do povo lusíada e da aventura humana, empenhada na devassa da natureza, mas a jorna­da arquetípica de uma alma, que se descobre individual­mente e busca na memória colectiva a efectividade de valores, posta à prova pela exigência dos tempos. Os Lu­síadas passam a ser encarados como uma obra plurissigni­ficante. E a voz do poeta, que na epopeia se faz ouvir, ga­nha novas dimensões na lírica, onde a torturante exploração da subjectividade, do amor e do conhecimento atinge a maior altura, fazendo de Camões indiscutivelmente um autor de estatura universal."
 


Miguel Mósca Nunes

31.10.24

Merinda.jpeg

Trago-vos uma sugestão de leitura para esta época tão característica e adolescente. Voltada para tudo o que é assustador, esta história tem ingredientes que nos levam à nossa infância e nos trazem memórias de avós, daqueles Outonos frios e chuvosos preenchidos por leituras que se prolongavam até altas horas sem que os pais soubessem, por filmes de terror, e por doces e travessuras.

Sejam felizes e aproveitem todas as festas e celebrações que conseguirem. Nós por cá, aproveitamos todas as tradições, mesmo que não sejam portuguesas. Não temos qualquer problema em dizer que importámos o Halloween e o Thanksgiving.

Tudo serve para celebrar e estarmos juntos.


Miguel Mósca Nunes

16.10.24

Fui a correr bater à porta da D. Emília, aflita, para lhe dizer que o Sr. Padre tinha falecido. Abriu a porta, perguntou "o que se passa, rapariga?" e ajoelhou-se assim que ouviu aquelas palavras duras e definitivas. Emília adorava o padre, idolatrava-o, amava-o.

Sempre que era possivel beijavam-se e tocavam-se, na sacristia, dentro da pequena casa-de-banho ou mesmo no meio da sala, normalmente encostados à maciça secretária. Quando não estava mais ninguém na igreja, nenhum acólito, religiosa ou devoto, entregavam-se um ao outro. Perdiam-se um no outro. Juravam que seria para sempre. E foi.

Nunca ninguém descobriu, sequer desconfiou. Houve um dia em que a coisa esteve quase às claras, numa tarde de chuva intensa, sem missa das dezoito, sem previsão de visitas. A sacristia tinha um tapete de arraiolos, que serviu de cama para um desvario incontrolável. Quando terminaram, ficaram deitados à conversa... ouviram uns passos que trouxeram a clara noção de que não tinham fechado a porta. Ele levantou-se à velocidade do som e foi mesmo a tempo de conter a chata da Cremilde, que gostava mais de estar entretida a acender velas e a contar o dinheiro do ofertório do que em casa a aturar o marido, de quem sentia nojo. Ela ainda entreabriu a porta mas nada viu. Estava mais preocupada com os fósforos que procurava e assustou-se com aquele empurrão que não sabia de onde vinha. "Senhor Padre! Senhor Padre?!", chamava, em pânico. Como não havia resposta, começou a ficar convencida de que quem tinha fechado a porta não era deste mundo e saiu da igreja a correr.

Trinta anos depois, sem querer saber da opinião alheia, chorava o seu amor, numa tarde de chuva intensa. Segurou na mão gelada do seu amado Luís, que ali deitado não era da Igreja... era seu. Beijou-o na boca e percebeu que ele já não estava naquele corpo. Não deu conta dos esgares de espanto das escandalizadas carpideiras e saiu da câmara ardente, para se atirar para a Formosa.

 


Miguel Mósca Nunes

06.08.24

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De acordo com o combinado, os dois amigos estacionaram as bicicletas mesmo em frente ao portão da Dona Leucádia, às dez para as três da tarde. Entretanto, ela já os estava a ver pela janela do quarto e abriu-a para lhes pedir que entrassem e colocassem as bicicletas dentro da propriedade, para que não fossem roubadas. Conforme tinham prometido, foram equipados com ténis e agasalhos, e levaram as mochilas, com sandes e garrafas de água, às quais Dona Leucádia juntou umas madalenas de maçã e canela.

 Enquanto esperavam que a dona da casa desse uma volta às várias divisões, para verificar se as janelas estavam todas fechadas, sentaram-se na cozinha e foram comendo o que estava por ali. Avelãs, passas, bolachas de amêndoa… os dois garotos pareciam umas trituradoras de comida.

 Eram três e meia da tarde quanto saíram de casa da velhota e iniciaram o percurso, sempre com as indicações de Dona Leucádia. Demoraram cerca de trinta minutos para saírem do Jerumelo e chegarem à estrada principal, que atravessaram. A partir daquela altura, entrariam na floresta. E foi o que fizeram.

 Percorreram uns escassos metros, e lá estava a coruja branca, pousada num pinheiro. A ave estava imóvel, com os seus olhos verde-escuros a observá-los.

 ― Dona Leucádia, veja quem está ali, naquele pinheiro ― disse João, fazendo com que Ricardo também olhasse na mesma direção.

 ― Credo, que coisa esquisita! ― exclamou Dona Leucádia. ― Ela acompanha-me sempre nestas idas a casa da Merinda. Sempre, sempre…

 ― É mesmo esquisito! ― afirmou Ricardo. ― Eu acho até que é assustador.

 ― Assustador?! ― perguntou João, querendo que Ricardo esclarecesse melhor o que queria dizer.

 ― Sim! Então, se a coruja aparece sempre que a Dona Leucádia vai a casa da bruxa e, ainda por cima, já a vimos a espreitar para dentro de casa…

 Quer João, quer Dona Leucádia acharam que Ricardo tinha razão. Havia qualquer coisa de muito estranho, assustador mesmo. De repente, a presença da coruja fê-los sentir um grande incómodo, levando-os a pensar a mesma coisa: o animal estava ali por uma razão qualquer, que eles não compreendiam, mas que existia.

 ― Será que ela nos está a vigiar?! ― questionou Ricardo, cortando os pensamentos dos outros dois.

 ― Credo, filho! Eu nem quero pensar numa coisa dessas! ― respondeu Dona Leucádia.

 ― Eu não a quero assustar, mas que é muito estranho, lá isso é ― concluiu Ricardo, enquanto observava a coruja branca. ― Olhem para aquilo, nem se mexe.

 Mas a seguir mexeu-se. Levantou voo, exibindo um deslumbrante batimento de asas, e os três exploradores ficaram a admirar a cena.

 ― Não acham que devemos continuar? ― perguntou João, tentando desviar a atenção do assunto assustador. ― Estamos a perder tempo, aqui parados, a olhar para uma coruja.

 ― Tens razão, filho, vamos continuar, que isto ainda leva algum tempo.

 ― Quanto tempo, Dona Leucádia? ― perguntou Ricardo.

 ― Depende… se a coisa correr bem, é para aí uma meia hora. Se a coisa correr mal…

 Os dois amigos entreolharam-se e fizeram, ao mesmo tempo, uma expressão de preocupação. «A aventura pode correr muito bem, ou muito mal…», repensou João, um pouco irritado com a resposta de Dona Leucádia. Estava a acreditar mais na segunda hipótese.

 Começaram a subir uma espécie de ladeira, com eucaliptos de um lado e do outro, onde existiam alguns troncos caídos que tiveram de pular. Dona Leucádia, para a idade que aparentava ter, tinha uma agilidade espantosa. Teve tanta facilidade quanto a dos dois jovens, quando se tratou de passar por cima dos troncos, coisa que estes acharam estranhíssima. Aliás, desde que tinham avistado a coruja que estavam a achar tudo muito estranho.

 Repentinamente, cheirava a chocolate.

― Hummmmm, que cheirinho tão bom… É este o cheiro que às vezes sentimos na Malveira ― disse João, a salivar.

 ― Sim, claro! A Merinda está ocupada há umas semanas largas a preparar tudo ― disse Dona Leucádia, não se apercebendo do olhar espantado dos ouvintes.

 ― A preparar tudo, o quê? ― perguntou Ricardo.

 ― Ora essa, os chocolates! ― exclamou Dona Leucádia, como se já tivesse falado com os rapazes sobre o assunto.

 De facto, já tinha falado imensas vezes sobre os chocolates, mas com outras pessoas da vila, que não acreditavam numa única palavra que dizia. Com os rapazes falara de vários pormenores, exceto deste.

 ― Mas que chocolates, Dona Leucádia? ― quis saber João, já um pouco impaciente.

 ― Os chocolates que as crianças recebem no dia 31 de outubro, por conta das partidas que foram fazendo. E também no Natal!

 ― Não posso acreditar! A sério?!

João estava excitadíssimo, lembrando-se dos chocolates que ainda tinha em casa.

 ― É a Merinda quem os prepara e os distribui ― completou Dona Leucádia.

 ― Por isso é que andou toda a gente doida, a querer saber quem tinha colocado os chocolates nos parapeitos! ― exclamou Ricardo.

 ― Sim! Já estavam com grandes teorias, a dizer que os pais tinham combinado tudo entre eles ― completou João. ― Afinal é a bruxa!

 ― Mas há amigos nossos que não receberam nada! ― disse Ricardo, intrigado.

 ― Isso é porque não pregaram uma única partida ― explicou Dona Leucádia.

 Os garotos, se fossem balões, há muito que teriam rebentado de tanto entusiasmo. Andaram mais uns dois quilómetros, sempre a conversarem com regozijo, porque finalmente estavam a perceber que os cheiros misteriosos que nos últimos tempos existiam na vila também tinham uma explicação. A apreensão causada pela coruja já tinha desaparecido.

De repente, estacaram os três. No caminho, estava um lobo, com um tamanho que os rapazes não julgavam possível naquela espécie, parado, a olhar para eles. Sem qualquer explicação, viram Dona Leucádia avançar até ao animal e começar a falar.

 ― Olá, meu menino! Tão querido o menino da avó. ― Dona Leucádia fazia festas e segurava o focinho do lobo. ― Quem é o menino mais lindo da sua vovó?!

 João e Ricardo estavam agora de queixo caído. Aquele ser que estava ali a receber festas teria mais meio metro do que Dona Leucádia, se se pusesse de pé, apoiado nas patas traseiras.

 ― Meus queridos, venham conhecer um dos meus amigos da floresta ― disse, felicíssima. ― Este acompanha-me de vez em quando. E não é estranho como a coruja ― concluiu, rindo-se à gargalhada.

 Com cautela, os garotos foram-se aproximando, mas à medida que estavam mais perto mais tranquilos ficavam. Até que deram por eles junto do animal, a fazer-lhe festas. A partir desta altura, caminharam sempre a quatro. Aos quarenta minutos de percurso, verificados no relógio de João, Dona Leucádia estava admirada com o facto de o caminho se estar a fazer tão bem, como quando o fazia sozinha. Habitualmente, quando ia com outras pessoas, as dificuldades começavam logo de início e até àquela altura ainda não tinham surgido as malditas falhas de memória.

 ― Dona Leucádia, estamos quase a chegar? ― perguntou João. ― É que já passou meia hora…

 ― Para espanto meu, parece que as coisas estão a correr muito bem. E já estou com fome.

 Resolveram fazer uma pausa para comer. E o lobo também lhes fez companhia, deliciando-se com as madalenas que Dona Leucádia lhe ia dando à boca. Uma considerável boca.

 Passado algum tempo, não se sabe quanto pois os relógios dos três exploradores tinham parado, para seu enorme espanto, retomaram o caminho e caminharam bastante até desembocarem numa clareira. Os olhares das três criaturas ficaram focados numa porta gigantesca, localizada a escassos metros dos seus pés.

 João e Ricardo não queriam acreditar no que estavam a ver.

 ― Meninos! Meninos! ― exclamou Dona Leucádia, felicíssima, com as faces roborizadas pelo entusiasmo. ― É a primeira vez! A primeira vez que consigo trazer aqui alguém!

 ― Então, e agora? ― perguntou Ricardo, olhando surpreendido para Dona Leucádia, que continuava a esbracejar e a voltear, parecendo uma adolescente a dançar, frenética, no baile de finalistas da escola.

 ― Nunca, mas nunca, tinha conseguido cá trazer alguém!

Dona Leucádia continuava naquele frenesim rodopiante.

 ― Vamos lá bater? ― perguntou João, num misto de receio, curiosidade e entusiasmo.

 ― Bater? ― Dona Leucádia parou. ― Oh, sim, bater… Sim, vamos bater à porta, claro.

 ― Tem certeza de que a Merinda não nos faz mal? ― perguntou Ricardo, com uma expressão carregada de quem estava com medo.

 ― Fazer mal, meu querido? ― perguntou, espantada, a velha senhora. ― Alguma vez?! A Merinda é um doce de pessoa. Vamos lá!

 Caminharam em direção ao casarão. Naquela clareira havia bastante folhagem no chão de terra ocre, e os três iam pisando alguns ramos secos e quebradiços, emitindo estalidos aqui e ali. O dia tinha escurecido, e o aspeto do arvoredo estava medonho. Pararam a alguns centímetros da imponente porta castanha escura, cheia de veios, alguns muito profundos.

 Dona Leucádia segurou no pesado batente de ferro ferrugento em forma de lua e, com algum esforço, fez soar três grandes pancadas.

 

in Merinda, Miguel Mósca, Edições Vieira da Silva, 2019


Miguel Mósca Nunes

17.07.24

A banda sonora do filme "Merry Christmas Mr. Lawrence", do brilhante Ryuichi Sakamoto, veio ter comigo através do youtube, e inundou-me de memórias da longínqua década de 80. O filme data de 1983 e conta com David Bowie. Sakamoto também já faleceu, passados 41 anos. Foi ontem que a música veio ter comigo, e tenho-a na cabeça até agora. Nela transparecem uma sensibilidade e uma genialidade que deixam marcas na alma. E estou nostálgico.

É curioso... não me lembro se fui ver este filme na altura, mas tenho quase a certeza de que o vi na tela grande, numa época em que reservava as férias do Verão para ir ao cinema, sozinho, por minha conta e sem interferência de ninguém, sem filtros, sem querer saber da idade recomendada. O mesmo acontecia com os livros, não havia limites ou censura - lia tudo o que me apetecesse.

Um solitário viajante no espaço e no tempo, através dos filmes e dos livros. Apanhava o autocarro nos Olivais e ia até aos cinemas Alfa, ao Londres, ao Império, ao Alvalade, ao S. Jorge, ao Condes, ao Eden, ao Monumental... o solitário sonhador que percorria as ruas de Lisboa cheio de pensamentos e de ideais, a acreditar num futuro brilhante. Na altura queria ir viver para Nova Iorque e viajar muito. Conhecer lugares, monumentos e museus, olhar para artefactos históricos.

Perco-me nestas memórias e vagueio infinitamente num tempo que já não é o meu, o tempo dos saudosos anos 80, como se estivesse adormecido.

Solitário.

 


Miguel Mósca Nunes

03.12.22

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Caros leitores,

Porque estamos no Natal, trago-vos um livro sobre o espírito desta época. Trata-se de uma história sobre o infortúnio, a perda dos nossos entes queridos, mas também sobre a esperança e a forma como recuperamos dessa perda, com todas as resignificações e ajustes. É um livro sobre os valores e princípios que devem prevalecer para que permaneçamos boas pessoas, sobre o sacrifício dos pais e a luta que travam todos os dias para que os filhos estejam seguros e de boa saúde. Fala, sobretudo, sobre o amor. Sobre a esperança num mundo bem melhor, em que estejamos com os corações cheios de bem-querer. E sobre a redenção e o que ela pode fazer na vida de cada um de nós.

Glenn Beck, envolve-nos numa história comovente sobre um garoto que perde o pai, e que luta para sobreviver a essa terrível experiência, sem que a mágoa e o rancor o destruam. Garanto-vos que irão ler o livro de uma assentada. E, como o autor nos diz, “o melhor presente é qualquer presente oferecido com amor.”

Boas Festas!


Miguel Mósca Nunes

29.10.22

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Desta vez trago um livro que é muito especial para mim, sobretudo porque fui eu que o escrevi e é o primeiro que publico.

Trata-se de uma história que nasceu do Amor, porque é baseado numa fantasia que inventei para os meus filhos, quando eram pequenos.

Dois amigos, residentes na Malveira, vivem uma aventura fantástica e sobrenatural, que os leva a experiências por vezes aterradoras.

A minha ideia sempre foi a de apresentar uma narrativa despretensiosa, por vezes simples, acessível a uma camada jovem, mas que pudesse ser lida por gente mais madura. Julgo que pode ser lida por todos os que gostam de uma boa história com ingredientes referentes ao Halloween e ao Natal, embrulhada em mistério.

É também uma homenagem à Malveira, terra que me acolheu desde 2004, e, tenho quase a certeza absoluta, é a primeira história de ficção cuja acção decorre nesta vila.

Esclareço já que não sou nenhum santo, e quem pensa que tenho essa pretensão, ou que quero ascender a algum estado de beatificação, não é objecto da minha preocupação e não serve de travão para que eu expresse aquilo em que acredito. Por isso mesmo, reitero que o livro é um veículo para mensagens de empatia, igualdade de direitos, solidariedade, de abraçar a diferença, e da ideia fundamental de que a opinião dos outros não tem qualquer importância quando só serve para destruir os nossos sonhos.

Boas leituras e feliz Halloween (o mesmo será dizer, aproveitem o pouco tempo livre para amar)!


Miguel Mósca Nunes

26.10.22

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No aproximar da quadra natalícia, onde os valores da fraternidade, da inclusão e da igualdade devem ser exaltados, fazendo frente à vocação, curiosamente muito humana, segregacionista e discriminatória, “O Diário de Anne Frank” surge como uma excelente leitura, principalmente para os jovens, podendo ser um óptimo presente. Mesmo para os mais resistentes aos livros.

O relato do dia-a-dia, num período de mais de dois anos, de um conjunto de judeus, escondidos num exíguo anexo, atirados dessa forma para uma condição sub-humana de existência, escrito por uma jovem na transição para a fase da adolescência, torna-se particularmente violento e torturante, quando o leitor sabe que o destino provável é a morte daquela família às mãos dos nazis. Porque a história é sobejamente conhecida, e porque o terror do Holocausto foi real e implacável. Impiedoso.

Mas o que o livro encerra, verdadeiramente, é a terrível e actual ameaça de um acontecimento que germinou nos mais profundos sentimentos de ódio e de rejeição da diferença, que é transversal à História da Humanidade, e que teve uma das suas mais negras expressões no nazismo alemão, que começou a crescer na República de Weimar (logo após a Primeira Guerra do Séc. XX). Nos dias de hoje, os sinais de que não mudámos permanecem assustadoramente vivos.

A oposição entre o bem e o mal é patente nesta obra, nas palavras de uma jovem encarcerada, com o objectivo de fugir aos horrores dos campos de concentração (não conhecia as razões últimas – escapar ao extermínio), com todos os motivos para descrer no seu futuro, mas que mantinha uma centelha de esperança, e tinha o desejo de ser melhor, no meio daquele circunstancialismo: “(…) todos os dias resolvo ser melhor”.

Apesar de tudo, acreditava na bondade Humana.

Boas leituras e feliz Natal.


Miguel Mósca Nunes

19.10.22

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Este livro é escrito por quem, cada vez que vai a Almeirim, dorme no quarto que foi desta figura impar no panorama cultural português: D. Leonor de Almeida, 4.ª Marquesa de Alorna e 8.ª Condessa de Assumar.

O livro inicia a sua narrativa no dia 1 de Novembro de 1755, dia de Todos os Santos, o fatídico dia que mudou Lisboa para sempre, e retrata a vida desta mulher da alta nobreza portuguesa, que passou dezoito anos atrás das grades do convento de São Félix em Chelas por ser neta de Francisco de Assis de Távora, vítima da conspiração conhecida como o "Processo dos Távoras".

Mas nem esta vicissitude serviu para deter uma mentalidade extraordinária, um talento e sabedoria ímpares, características únicas na altura, sobretudo porque se trata de uma mulher, exaltando a força e a importância do feminino, do conhecimento e da cultura, como forma de se posicionar no mundo, tomar decisões e agir, em consciência.

Dobrou o infortúnio do cárcere através da leitura e da escrita. Voou, através do estudo, preparando-se para a etapa seguinte da sua vida - a liberdade.

Ter sido mãe de oito filhos, católica, poetisa, política, viajada, inteligente e sedutora, são ingredientes mais do que suficientes para a leitura deste livro apaixonante.


Miguel Mósca Nunes

17.10.22

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Nestes tempos conturbados de incerteza relativa aos Direitos Humanos, num contexto muito específico de pós-pandemia e de guerra, que nos faz pensar sobre o destino da Humanidade, deparamo-nos com o ressurgimento de movimentos extremistas motivados pelo ódio e pela intolerância, especificamente na Europa.

Torna-se urgente que olhemos de forma séria para a História recente (passaram apenas 77 anos da libertação do campo de concentração de Auschwitz) e tomemos consciência de que o mal anda por aí, insidioso e a preparar terreno para práticas inimaginavelmente crueis e horríveis. E isto, meus caros, poderá não ser um exagero.

Para que não nos esqueçamos, trago-vos este livro, de Esther Mucznik, que foi a Auschwitz pela primeira vez a 27 de Janeiro de 1994, e que descreve o universo concentracionário Nazi, isto é, a indústria de morte construída com o objectivo final de extermínio dos Judeus. 

Claro que os prisioneiros de Auschwitz eram políticos, opositores e resistentes, prisioneiros de guerra russos, criminosos, prostitutas, ciganos, deficientes, dementes, homossexuais e testemunhas de Jeová. Mas, efectivamente, o alvo principal do ódio Nazi e da “Solução Final” foram os Judeus.

Uma leitura obrigatória, perante os acontecimentos dos últimos tempos, para que mantenhamos os pés no lado bom da barricada, e os olhos bem abertos quando estivermos perante a face do mal.

Não nos podemos esquecer, porque acredito que ainda vamos a tempo.

Boas leituras.

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