Miguel Mósca Nunes
24.05.23
Morreu Tina.
A mulher revolucionária, que se emancipou quando ninguém pensaria que seria possível, numa indústria que vangloria a juventude e despreza o que é maduro. Neste nosso país, uma roqueira quarentona não teria qualquer hipótese, nem hoje e muito menos nos anos 80. Quebrou, portanto, com o idadismo que a levaria a não tomar qualquer iniciativa para recomeçar. Estava nos Estados Unidos (ali, a idade não é tão derrotante), mas era, sobretudo, Tina. E por ser Tina, concretizou o maior regresso alguma vez visto na história da música, com o álbum Private Dancer. Aos 44 anos.
Deu com os pés num marido abusivo, que a esmurrava e humilhava, mesmo na presença dos filhos, deixando para trás todos os direitos de meia vida em cima de um palco suado, exigindo apenas o nome: Turner.
Esta mulher negra, nos anos 70 do século passado (1976), teve a coragem de devolver, ao monstro que a maltratou durante anos, uns valentes golpes (foram poucos), de o abandonar no hotel onde ambos estavam hospedados, e entrar numa perplexa recepção de hotel do outro lado da rua, de cara intumescida e ensanguentada, para pedir que a deixassem ficar só por aquela noite.
Entre 1976 e 1983, um período apelidado por muitos de nostálgico, foi insistindo e continuando a suar em cima do palco, com uma garra inigualável, até que lançou o cover Let's Stay Together, de Al Green, acendendo de novo o sucesso. Já não era, há muito, a Tina do Ike.
Dotada de uma voz poderosa mas muito característica, sublimou o seu passado para o transformar num futuro que se revelou generoso. Sozinha, procurou uma identidade artística que se afirmou com What's Love Got to Do with It, ainda que fosse uma canção previamente gravada pelo grupo Bucks Fizz. E foi assim até se retirar. Inconfundível.
Tina Turner é mais uma referência que desaparece, um monumento cantado da minha contemporaneidade. As memórias da minha adolescência estão a esvair-se, com estas perdas sucessivas que fazem com que eu tenha o vislumbre do meu próprio fim.