Miguel Mósca Nunes
01.06.21
29 de setembro. Sentado nos degraus exteriores, à entrada do edifício onde vive, bem perto dos Bombeiros Voluntários da Malveira, João espera que o seu vizinho suba as escadas até ao patamar de acesso aos elevadores.
É um rapaz vivaço e aventureiro, de onze anos, alto para a sua idade e cheio de energia. Moreno e de olhos castanhos como avelãs, esguio e ágil. Tem um pequeno sinal na ponta do queixo, que lhe dá um ar engraçado. Adora andar pela vila de bicicleta, e costuma fazer recados à mãe dessa forma, porque chega mais depressa a todo o lado.
Espera que o Sr. Camilo, um dos seus vizinhos, um homem robusto e afável, entre para o átrio e se enfie na cabine do elevador. Espreita com alguma dificuldade pelos vidros cheios de reflexos e confirma que o homem desaparece. Galga os degraus, entra no edifício, e começa a sua tarefa. Está num entusiasmo tão grande, que quase rebenta de alegria.
Tira a tampa da embalagem de manteiga que trouxe de casa e, com a ajuda da faca de sobremesa da sua mãe, começa a besuntar a pega das portas dos elevadores, de maneira a que não se veja. Repete a proeza em todos os andares. E faz o mesmo nas maçanetas das portas de todos os apartamentos. Depois disto, vai a correr para a escola, porque não quer chegar atrasado à aula de Português.
Ri o caminho todo, ao imaginar o resultado do que acabou de fazer.
No intervalo grande, e depois de correr para trás do pavilhão D com Ricardo, o seu melhor amigo, João retirou da mochila um frasco com uma mistela que tinha preparado no dia anterior, na qual misturou mostarda, um tempero de alho que encontrou no frigorífico, pó de caril que retirou do cesto de especiarias que está há anos na despensa, e vinagre, para diluir. Aquela coisa ficou pastosa. E cheirosa! Parecia estar a viajar para a Índia.
Ricardo, loiro e de olhos azuis como o mar, é, de facto, o melhor amigo de João. E é um rapaz especial, com uma sensibilidade fora do comum. Conhecem-se desde o infantário, e sempre tentou proteger João, compadecendo-se com o amigo, quando este se encontrava em apuros. São como irmãos.
Os dois riram à gargalhada quando decidiram colocar aquela mixórdia na cadeira da professora Amélia.
― Temos de besuntar muito bem, para ela não notar. Isto tem a cor da madeira e tudo! ― disse João, aos saltinhos, desequilibrando-se e quase tropeçando no passeio. ― Vamos para a sala agora, antes que a stôra chegue!
― Bora lá! ― respondeu o companheiro de quase todas as partidas.
Entraram na sala, trepando pela janela, dirigiram-se para a secretária ao pé do quadro de ardósia, e fizeram o trabalho, pondo uma camada generosa daquela mistela, com uma perícia pouco comum para duas crianças de onze anos. Ficou liso como se fosse o próprio assento. Saíram da sala, pela mesma janela, quando faltavam cinco minutos para o início da aula.
Tocou a campainha, entraram os alunos, chegou a professora de ciências. Esguia, pálida e vestida com um saia-casaco de xadrez. Prestes a fazer quarenta e cinco anos, parecia ter mais dez.
Pairava no ar um cheiro familiar. A mulher lembrou-se daquela vez em que almoçou com o marido num restaurante indiano, em Lisboa, e em que comeu, até fartar, todas aquelas magníficas iguarias.
― Bom dia a todos ― disse a professora, de pé, encostada à secretária. ― Hoje vamos falar sobre o sistema respiratório, e depois vamos fazer uma ficha sobre esta matéria.
Durante quase todo o tempo de aula, a mulher andou de um lado para o outro, à medida que ia falando. João e Ricardo, na mesma carteira, estavam num frenesim, com um nervoso miudinho, sempre à espera de vê-la sentar-se no raio da cadeira.
― E se aquilo seca?! ― disse Ricardo, preocupado por estar a demorar tanto tempo. ― Olha lá o sol a dar bué naquela porcaria…
― Não seca nada! ― respondeu João, com a certeza de quem fez um belo trabalho.
A quinze minutos do fim, a professora distribuiu as fichas.
― Agora, façam silêncio para que possam responder a todas as questões ― disse. ― Com calma, que ainda temos tempo.
Dirigiu-se para a cadeira e, num movimento que os dois amigos acharam demorado, de tão ansiosos que estavam, a mulher sentou-se. Um minuto. Passou um minuto até que pudessem ver as faces brancas da desgraçada a encarniçar, o olhar a ficar brilhante, as mãos a tremerem.
Permaneceu sentada, imóvel como uma estátua, até deixar todos os alunos saírem da sala.
― Coloquem aqui os vossos enunciados… digo-vos os resultados na próxima aula… ― balbuciou.
E fez assim porque sabia que havia alguma coisa que não estava nada bem, mas não percebeu logo o que lhe tinha acontecido. Chegou a pensar que tinha sido um descuido seu e, por isso, esperou que todos saíssem para poder estar à vontade.
Quando se levantou e colocou a mão na saia, e cheirou os dedos ossudos, os dois reguilas já espreitavam pela janela, do lado de fora, contendo o riso para não serem descobertos. Viram-na sair, esbaforida e de mãos bem abertas, por as ter sujas. Depois correram o mais depressa que conseguiram, rindo à gargalhada, até às traseiras do pavilhão onde haviam planeado a patifaria.
Estavam sentados num banco de pedra, voltados para uma parede de cimento, mais contentes do que nunca, quando viram uma sombra com uma forma nunca antes vista por aqueles quatro olhinhos traquinas. Havia alguma coisa atrás deles, que fez com que ficassem quietos e sem pinga de sangue. Não se atreveram a virar-se, tal era o medo.
Passados alguns segundos, a sombra subiu e desapareceu, com um ruído que aqueles quatro ouvidos nunca tinham ouvido. Olharam um para o outro, assustadíssimos. Não conseguiam falar. João tentava perceber o que tinha acabado de acontecer. Ricardo levou as mãos à cara. Aquela sombra…
Lá se voltaram, os dois ao mesmo tempo e… nada. Brilhava o sol, naquele pátio onde estavam sentados, e estava frio. Demasiado frio para o final de setembro. Ao longe, os gritinhos e a galhofa das crianças no recreio. Passados cinco minutos, estavam na aula de História.
Nesse dia à noite, e depois de uma tarde muito estranha em que os dois amigos estiveram todo o santo tempo muito sossegados e apáticos, coisa nada habitual, aquela experiência aterradora não saía da cabeça do João.
Nem sequer se divertiu com os comentários dos seus pais sobre a aventura que tinha sido o regresso a casa e sobre a maçaneta da porta de entrada. A vizinha de cima tinha, entretanto, tocado à porta, para perguntar se lhes tinha acontecido o mesmo. Era manteiga por todo o lado. «Mas que grande chatice!», tinha dito a senhora, com um pano amarelo na mão.
Depois de lavar os dentes e de se enfiar nos lençóis muito quentinhos devido à botija de água quente, lá conseguiu dormir. Há muito tempo que não pedia a companhia do pai para o adormecer. E sonhou.
E no sonho viu a sombra. E no sonho lembrou-se de que a sombra tinha a forma de um chapéu, um chapéu enorme e bicudo. E no sonho lembrou-se do que viu quando a sombra subiu.
Na sombra descortinavam-se uns cabelos compridos e ondulantes, umas vestes a esvoaçar, e…
Uma vassoura!
In "Merinda", Miguel Mósca, Edições Vieira da Silva, 2019