Capítulo III
Num Domingo de Outubro encontrámo-nos na Avenida de Roma. Andámos por ali, sem rumo definido, só com o objectivo de desabafar uma com a outra.
Falámos sobre o que nos ia na alma, ao mesmo tempo que fizemos comentários sobre os homens que passavam e sobre as montras de roupa. É curioso que, quando as mulheres que eu conheço falam dos homens, não o fazem da mesma forma que os homens quando estes falam das mulheres. O sentimento não é o mesmo. Ou se é o mesmo, não o escondem dos amantes. Acredito que seja assim para a maior parte de nós.
Entre as duas, as apreciações não penetram no campo da nojeira dos comentários que os homens tecem. A maioria deles, mais ou menos discretos, são ordinários.
Meu Deus, como são estúpidos. Basta passar por um grupo de homens que vão almoçar no intervalo do trabalho e escutar o que dizem para verificar que, mais uma vez, falam de mulheres. Muitas vezes atiram-nos ignomínias. E esta é uma faceta estanque, que não transparece na vida do santíssimo lar, para a respectiva mulher.
Claro que este lado tão promíscuo e imundo não poderia ser transposto para as conversas ao serão e ao fim-de-semana, com a mulher e os filhos. Tem de ficar bem escondido, de segunda a sexta-feira, das nove às dezoito.
Parece que esta gente anda a viver duas realidades distintas sendo que, no trabalho, com os colegas, ou no tempo livre, com os amigos, são pessoas expansivas, libertas e arejadas, tão arejadas ao ponto de a família ser arrastada para fora da memória pela ventania anestésica do vastíssimo campo visual.
E, em casa, no conforto dos chinelos e do roupão, são recatados e uns fieis mentirosos. Haverá excepções?
Parece que as mulheres estão a adquirir algumas características masculinas, das mais ridículas, mas tenhamos a esperança que seja uma percentagem muito reduzida. Não vamos, de oprimidas, passar para a estroinice e para a intrujice, sob a capa da emancipação.
Esse seria um destino bastante redutor, o de passar de uma existência inteligente, cheia de sensibilidade, argúcia e paixão, para um lamaçal de mentira. Podemos experimentar vários homens ou mulheres, sem caminhar na falsidade.
Bem sei que fomos escravizadas pelos homens e pelos seus malvados bons costumes, que só serviam para nós, mas a emancipação não significa perda de faculdades mentais!
— Os homens são todos iguais — disse Madalena, com a habitual certeza que acompanha esta afirmação.
— Pois... sei lá, será que há excepções? Sabes, é muito fácil meter tudo em gavetinhas e catalogar as pessoas sempre da mesma maneira.
— Ó Mafalda, tu não vês o Vitor! Está cada vez mais próximo do típico modelo masculino. — A sua expressão já estava a assumir a raiva que lhe mastigava as entranhas.
— Tudo bem, pode ser que sim, mas ainda não falaste a sério com ele, não lhe disseste que estás insegura. Não lhe perguntaste o que é que ele anda a fazer.
— Tenho medo.
Fervilhava no meu espírito a inquietação de Madalena. Eu sentia que o Vitor fazia parte do mesmo rol de homens e que não seria a excepção.
Depois de chegarmos à conclusão de que estávamos fartas do assunto, resolvemos divertir-nos e começar a fazer planos para o próximo fim-de-semana. Decidimos fazer uma viagem juntas para Portalegre, onde já tínhamos ido há bastante tempo. Seria bom passar pelos locais que tanto recordámos e comer aquelas migas deliciosas.
Madalena tomou a decisão de não deixar passar mais tempo. Teria uma conversa séria com Vítor.
Na segunda-feira seguinte, depois do trabalho, perto das sete horas da noite, foi ter a casa do namorado. Mal abriu a porta este fez logo uma expressão aparvalhada, esboçando um sorriso como que a pedir desculpa. Ele já tinha tentado falar com ela várias vezes, desde o último arrufo. Ligava para o telemóvel, ela não atendia. Falava com a D. Conceição pedindo para a filha lhe ligar. Este comportamento baralhava-a.
Beijaram-se e ele avançou colocando os braços à volta da cintura de Madalena, apertando-a contra si. Estava a pedir sexo com uma capa de romantismo. Este era mais um dos tais pedidos de desculpas. Ela permaneceu calada por alguns segundos, olhando-o nos olhos e afastou-se, caminhando de seguida para a sala. Antes de se sentar, disse-lhe que tinham de conversar. Ele olhou-a, sério. Madalena apoderou-se do comando da televisão e desligou o estafermo do aparelho, sentando-se primeiro do que ele. Vitor sentou-se à beira do sofá com os dedos das mãos entrelaçados.
Decidiu falar: — Eu sinto... desde há algum tempo a esta parte, que estás diferente.
Vítor olhou-a com um ar surpreendido: — Diferente como?
— Estás diferente. Ages comigo de forma diferente, estás frio. O teu comportamento mudou.
— Eu não estou a perceber... o que é que se passa?
— Nada. Só estás a anos-luz daquilo que eras para mim! Já não te interessa muito estar comigo, pois não? — Já que tinha começado, seria para doer.
— Ó pá...é assim, eu não estou a perceber Madalena, tens andado esquisita e agora vens com essas coisas...
— Claro, eu é que estou esquisita! Mas não sou eu que não quero namorar e sair para jantar fora e não sou eu que demonstro já não amar!
— Ah, e eu demonstro isso? — perguntou, perplexo e encurralado.
— Já não me amas pois não?
— Mas porquê esta conversa — perguntou, aflito. — Explica-me!
— Porque tu já não me amas! Tens outra?
— O quê?!
— Tens outra?
— Não digas disparates! — ele levantou-se.
— Responde! — ela levantou-se.
— Não! Não tenho!
— Não me estás a mentir?
— Não tenho ninguém porra! — gritou.
— Então porque é que não me ligas?
— Mas eu ligo-te Madalena, eu ligo-te! — Vitor estava vermelho de cólera. E gritava.
— Não me venhas com histórias! — Ela despejava as palavras, inclinada para a frente e com os punhos cerrados.
— Mas que histórias Madalena, estás a ser estúpida! — Já se lhe notavam as veias do pescoço dilatadas. — Vamos falar com calma, por favor?
— Não vale a pena, sabes. Porque eu acho que esta relação está nas últimas. — E decidiu arriscar. — Eu vi as tuas mensagens no telemóvel.
Para surpresa dela, ele ficou em silêncio por uns instantes.
— O que é que disseste? — perguntou Vitor, desarmado.
— Vi as mensagens no teu telemóvel — repetiu ela, com uma firmeza encenada. Estava a fazer de tudo para manter a postura.
— Agora andas a vasculhar o meu telemóvel?
Madalena não estava preparada para ouvir esta pergunta, que lhe deu a certeza de que as desconfianças tinham fundamento. E, com os olhos húmidos, continuou a mentir: — Pois é, vasculhei.
— Mas o que é que tu viste, Madalena? — perguntou Vitor com a voz trémula. — Merda… merda! Eu não queria…
— Eu não vasculhei nada meu estúpido! Eu não vasculhei… — começou a chorar.
— O quê? — Vitor olhava-a, espantado — o quê?!
— Eu desconfiava, mas no fundo não acreditava que fosses capaz! — Madalena gritava a plenos pulmões. — Estúpido! Estúpido!
— Pára… pára!
— Para quê a mentira, Vitor? Porque não me disseste que seria melhor acabar?
— Madalena…
— Cala-te! Vou-me embora! — atirou, com a raiva a sair-lhe dos poros. — Espero que não me tenhas transmitido nenhuma doença, com a merda que andaste a fazer!
Voltou costas e deixou-o, com uma decisão que não voltaria atrás. As recordações martelavam-lhe a cabeça no caminho para casa, numa condução nublada pelo cloreto de sódio, e nessa noite não dormiu até a mãe lhe dar um comprimido e ficar com ela deitada na cama. Dormiram abraçadas e de mãos dadas.
Dias depois Mafalda enviou uma mensagem a Vitor para combinar uma ida lá a casa, para tirar as coisas dela, de preferência quando ele lá não estivesse.
Passadas três semanas, Madalena foi ao apartamento, não respeitando o combinado. Apesar de terem terminado o namoro desta forma zangada, ela queria falar com ele.
E falaram sem qualquer tipo de rancor da parte dela. A conversa foi serena, sem acusações e Madalena sentiu que foi o encerramento de um capítulo da sua vida, e foi menos doloroso do que ela pensava.
Depois foi para Carcavelos e terminou a tarde a olhar o mar, sentada na esplanada a beber um gin tónico.
Quanto ao Vitor, contactou-a pelo telemóvel mais duas vezes depois deste último encontro, a implorar que ela reconsiderasse, que voltasse para ele, porque ele já não tinha nada com a outra, que tinha sido um disparate muito grande e que não voltaria a ser estúpido e a cometer aquele erro.
Madalena ouvira estas palavras com uma sensação estranhíssima, de não conhecer o homem com quem tinha namorado tanto tempo. Não parecia a mesma pessoa a falar. Era um discurso tão vulgar, daqueles que sempre ouviu nas novelas ou leu nos livros, e que não vira naquele que tinha sido o seu amor.