Miguel Mósca Nunes
16.10.24
Fui a correr bater à porta da D. Emília, aflita, para lhe dizer que o Sr. Padre tinha falecido. Abriu a porta, perguntou "o que se passa, rapariga?" e ajoelhou-se assim que ouviu aquelas palavras duras e definitivas. Emília adorava o padre, idolatrava-o, amava-o.
Sempre que era possivel beijavam-se e tocavam-se, na sacristia, dentro da pequena casa-de-banho ou mesmo no meio da sala, normalmente encostados à maciça secretária. Quando não estava mais ninguém na igreja, nenhum acólito, religiosa ou devoto, entregavam-se um ao outro. Perdiam-se um no outro. Juravam que seria para sempre. E foi.
Nunca ninguém descobriu, sequer desconfiou. Houve um dia em que a coisa esteve quase às claras, numa tarde de chuva intensa, sem missa das dezoito, sem previsão de visitas. A sacristia tinha um tapete de arraiolos, que serviu de cama para um desvario incontrolável. Quando terminaram, ficaram deitados à conversa... ouviram uns passos que trouxeram a clara noção de que não tinham fechado a porta. Ele levantou-se à velocidade do som e foi mesmo a tempo de conter a chata da Cremilde, que gostava mais de estar entretida a acender velas e a contar o dinheiro do ofertório do que em casa a aturar o marido, de quem sentia nojo. Ela ainda entreabriu a porta mas nada viu. Estava mais preocupada com os fósforos que procurava e assustou-se com aquele empurrão que não sabia de onde vinha. "Senhor Padre! Senhor Padre?!", chamava, em pânico. Como não havia resposta, começou a ficar convencida de que quem tinha fechado a porta não era deste mundo e saiu da igreja a correr.
Trinta anos depois, sem querer saber da opinião alheia, chorava o seu amor, numa tarde de chuva intensa. Segurou na mão gelada do seu amado Luís, que ali deitado não era da Igreja... era seu. Beijou-o na boca e percebeu que ele já não estava naquele corpo. Não deu conta dos esgares de espanto das escandalizadas carpideiras e saiu da câmara ardente, para se atirar para a Formosa.