Miguel Mósca Nunes
04.11.22
A violência obstétrica existe! E eu sei, porque aconteceu connosco, há vinte anos atrás.
23 de Setembro de 2002, uma hora da madrugada. Dores, que tinham começado na véspera, por volta das nove horas da manhã.
- Vamos já para a maternidade?
- Não. Vamos esperar e continuar a controlar o tempo entre contracções. - Já lá tínhamos estado às dezassete horas do dia anterior e mandaram-nos embora. A especialista* de preparação para o parto enchera-nos os ouvidos, a dizer que seria muito melhor aguardar em casa, porque entrando na box seria uma espera mais difícil.
- Ok, vamos tentar dormir mais um pouco.
Às três da manhã, as dores estavam mais fortes e fizeram-nos levantar e arrancar, novamente, para a maternidade. Assim ficariamos mais perto.
Às cinco, a minha mulher estava a vomitar numa rua contígua à Maternidade Alfredo da Costa, ao mesmo tempo que passava um carro-patrulha da Polícia de Segurança Pública, com um trio de agentes espantados. A partir daqui, e nesta sequência absurda de eventos, o nascimento da nossa filha tornou-se uma viagem muito pouco digna de um país civilizado.
Após mais algum tempo de hesitação para entrar nas urgências, com a ideia de que quanto mais tarde, melhor, a martelar nas nossas cabeças, e por não aguentar de dores, lá deu entrada a grávida, a desamparada e muito bem adestrada grávida, às oito da manhã. Só me foi permitido ir para junto da minha mulher às dezoito horas - chamo a isto alienação parental no parto.
Depois de mais de vinte e quatro horas de trabalho de parto, com uma epidural dada ao meio-dia, que entretanto perdeu efeito, sem possibilidade de ser realizada uma cesariana (bloco operatório entupido) e sem a presença de um médico, nasceu a minha filha, às vinte e duas horas e quinze minutos, pelas mãos de uma enfermeira-parteira de quem não recordo o nome, mas que teve um papel essencial para que aquele ser saísse rapidamente da barriga da mãe antes de asfixiar até à morte.
Não houve capacidade, precisamente por falta de meios, para perceber que a minha filha tinha o cordão umbilical em dupla circular à volta do pescoço, o que fez com que o parto se tivesse, perigosamente, prolongado. Não é necessário adjectivar o que a minha mulher passou, pois não?
Isto aconteceu porque os serviços de obstetrícia eram manifestamente insuficientes, e estavam entupidos de mulheres a precisar de parir, com um bloco operatório cheio, com falta de pessoal médico e meios para acudir às situações críticas.
Aquele ser maravilhoso, na sequência de um parto surreal, foi internado nos cuidados intensivos com um prognóstico reservado que indicava menos de 50% de hipóteses de sobreviver. Contudo, esses cuidados intensivos, com a ajuda determinante de Deus, salvaram-na. Saiu, milagrosamente, daquele lugar, passados dez dias.
Um lugar onde não existem urgências dignas, e em que as parideiras ficam horas à espera, a gritar de dor. Não havia necessidade, tendo em conta a gravidez maravilhosa. Naquela UCI, os profissionais de saúde fizeram tudo o que tinham ao seu alcance, com tão poucos meios e recursos.
A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP) refere o seguinte: «Apesar de bastante comum, a violência obstétrica continua a ser uma forma de violência pouco reconhecida. A violência obstétrica é a violência contra as mulheres no contexto da assistência à gravidez, parto e pós-parto. As formas mais correntes de violência obstétrica incluem abusos físicos ou verbais, práticas invasivas, uso desnecessário de medicação, intervenções médicas não consentidas, humilhação, desumanização e recusa de assistência ou negligência pelas necessidades da mulher». Contudo, é fundamental reforçar que este conceito contempla a violência obstétrica sistémica, isto é, a ausência de condições materiais e humanas que promovam uma assistência na gravidez, no parto e pós-parto, segura e digna.
Diz ainda que «O inquérito "Experiências de Parto em Portugal", realizado pela APDMGP e ao qual responderam mais de 3.800 mulheres, revela que 43,5% das mulheres inquiridas não tiveram o parto que queriam».**
Das conclusões do referido inquérito pode ler-se que «mais de um décimo das mulheres não se sentiu respeitada pelos profissionais de saúde, mais de um décimo considerou que os profissionais de saúde não comunicaram de forma afável e positiva, 14,3% referem não ter sido ouvidas no que tinham a dizer/pedir, 15,3 % não se sentiram seguras durante o parto e 13% não se sentiram apoiadas e cuidadas». No nosso caso, quem assistiu ao parto não poderia, nunca, fazer melhor, dadas as circunstâncias em que estávamos, todos, envolvidos. Reitero que fomos sujeitos a uma ausência de cuidados, a uma falta de assistência, que é sistémica.
Perante os recentes acontecimentos, relacionados com a crise nas urgências de obstetrícia, temo que as condições precárias do Serviço Nacional de Saúde tenham piorado, aumentando significativamente o risco de violência obstétrica, com consequências que podem ser muito graves.
Vinte anos depois...
* enfermeira que nos deu as aulas de preparação para o parto (o mesmo que "lavagem cerebral para não darmos muito trabalho ao pessoal da MAC"), curiosamente, num apartamento convertido em gabinetes, situado perto da Maternidade Alfredo da Costa. Esta criatura verbalizava muitas vezes que não valia a pena gritar...
** inquérito realizado em 2015.